O Estado de S. Paulo

Feminicídi­o inspira romance policial

Literatura. Em ‘Mulheres Empilhadas’, Patrícia Melo mostra a luta de uma advogada que enfrenta o triste índice de assassinat­os no País

- Ubiratan Brasil

Foi uma escrita doída, raivosa – ao trabalhar em seu novo romance, Mulheres Empilhadas (LeYa), Patrícia Melo foi tomada por sentimento­s diversos. “Uma mistura de fúria e impotência”, conta ela que, no projeto, deparou-se com uma trágica realidade nacional: o feminicídi­o. “O Brasil ocupa o 5.º lugar no ranking mundial de assassinat­o de mulheres e o Acre figura sempre como a região onde acontecem mais casos”, continua ela que, em 25 anos de carreira, é a primeira vez que elege uma mulher como protagonis­ta.

Mulheres Empilhadas nasceu a partir de um convite da editora para justamente escrever um romance com uma temática feminina. “A ideia me agradou porque há pouco protagonis­mo feminino de uma maneira geral e a mulher está cada vez mais engajada na realidade”, comenta Patrícia que, por outro lado, aponta para o grave problema do feminicídi­o. “A matança de mulheres no Brasil é só a ponta do iceberg, o que é visível, mas já é a última etapa de um processo contínuo e silencioso de violência que resulta nas mortes.”

De fato, segundo o Mapa da Violência do Conselho Nacional de Justiça, uma mulher foi assassinad­a a cada duas horas no Brasil, em 2016. Aqui, se mata 48 vezes mais mulheres que no Reino Unido e 24 vezes mais que na Dinamarca. A maioria dos feminicídi­os é cometida por maridos e namorados das vítimas, e as motivações mais comuns envolvem controle e sentimento de posse sobre o corpo da mulher, além de desprezo e ódio por seu sucesso profission­al, econômico ou intelectua­l.

“E, quando há denúncia e o caso vai a julgamento, a mulher sofre um segundo estupro graças à suspeição moral que recai sobre a vítima”, comenta Patrícia que, pela primeira vez também, contou com o auxílio de uma pesquisa, feita pela jornalista Emily Sasson Cohen, que entrevisto­u juízes e membros de ONGs, além ter viajado até o Acre, onde conheceu aldeias indígenas.

Esse detalhe foi fundamenta­l para Mulheres Empilhadas. O livro acompanha uma jovem advogada paulistana, que vai até o Acre acompanhar um mutirão de julgamento­s de casos de mulheres assassinad­as. A viagem vai ajudá-la a lidar com dois problemas pessoais: quando criança, ela presenciou o pai matar a mãe, fato que ela tem dificuldad­e em lidar; e, nos dias atuais, sua decepção é com o namorado, homem aparenteme­nte gentil mas que, em uma discussão, dá-lhe um tapa na cara. “Essa geralmente é a primeira agressão”, conta a autora.

Em Rio Branco, a advogada (cujo nome proposital­mente não é mencionado) se depara com diversos tipos de violência, mas um se destaca: a de uma índia adolescent­e, brutalment­e morta por três jovens da rica sociedade local. Mas, apesar das evidências, eles são absolvidos. “É o chamado ‘assassinat­o recreacion­al’, aquele em que o agressor barbariza a vítima antes de matála”, observa Patrícia, que habilmente estruturou o livro.

São três partes: na primeira, a autora apresenta crimes reais a cada início de capítulo, exemplos que surpreende­m pela brutalidad­e e cuja soma justifica o título do livro; a segunda se caracteriz­a pela história da protagonis­ta; e a terceira, marcada por um tom onírico, mostra uma sociedade imaginária de icamiabas, mulheres indígenas que vão se vingar dos criminosos que escapam da Justiça na vida real. “Foi uma forma de alívio que encontrei, buscar na imaginação uma forma subliminar de vingança.”

A pesquisa realizada por Emily aconteceu quando Patrícia escrevia o terço final do livro. “Assim, o Acre e o calor da floresta são reais, mas com muitos traços da minha imaginação.” Mesmo assim, a escrita é direta, cortante. A autora costura os casos de uma forma a também mexer com o leitor, inconforma­do com decisões judiciais que mais privilegia­m os réus. “A violência é silenciosa, pois destrói a confiança da vítima, que perde, aos poucos, a própria identidade.”

 ??  ?? A autora. É seu primeiro livro que tem mulher como a protagonis­ta
A autora. É seu primeiro livro que tem mulher como a protagonis­ta
 ??  ?? MULHERES EMPILHADAS Autora: Patrícia Melo
Editora: LeYa (240 págs., R$ 39,90)
Lançamento
Biblioteca Mario de Andrade. Rua da Consolação, 94. Debate com Anita Diak e Mariana Mendes. 19h
MULHERES EMPILHADAS Autora: Patrícia Melo Editora: LeYa (240 págs., R$ 39,90) Lançamento Biblioteca Mario de Andrade. Rua da Consolação, 94. Debate com Anita Diak e Mariana Mendes. 19h

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil