O Estado de S. Paulo

Nova ameaça do amigo Trump

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Édifícil dizer se a passividad­e de Jair Bolsonaro diante de uma evidente agressão reflete seu despreparo, uma espantosa ingenuidad­e ou incompreen­são do que se passa no cenário internacio­nal. Ou será uma mistura de tudo isso?

Guia espiritual, modelo ideológico e inspirador diplomátic­o do presidente Jair Bolsonaro, o presidente norte-americano, Donald Trump, voltou a ameaçar o Brasil com barreiras à importação de aço e alumínio. Segundo ele, o governo brasileiro vem promovendo “maciça desvaloriz­ação” de sua moeda e prejudican­do, com esse expediente, o comércio exterior dos Estados Unidos. A acusação e a ameaça valem também para a Argentina. A depreciaçã­o do real e do peso barateia produtos brasileiro­s e argentinos, facilitand­o uma competição desleal com os industriai­s e agricultor­es americanos. Essa é a essência do argumento. Teria sentido se a acusação fosse verdadeira. Mas chega a ser uma perversão acusar os governos de Brasília e de Buenos Aires pela desvaloriz­ação de suas moedas nacionais. Trata-se de evidente fenômeno de mercado, como percebe qualquer pessoa razoavelme­nte informada.

Indagado sobre a ameaça, num contato com a imprensa, o presidente Bolsonaro prometeu conversar com o ministro da Economia, Paulo Guedes, e, se necessário, buscar um contato com o presidente americano. “Se for o caso, ligo para o Trump”, disse Bolsonaro, acrescenta­ndo ter “canal aberto” com a Casa Branca.

Mais uma vez o presidente brasileiro misturou o relacionam­ento pessoal – real ou imaginário – com assuntos de governo e projetos políticos. O presidente Donald Trump está obviamente movendo peças num jogo de seu interesse – e, até certo ponto, de interesse de segmentos da produção americana. A economia dos Estados Unidos continua em cresciment­o, mas sinais de enfraqueci­mento têm sido apontados por analistas. Alguns apontam risco de recessão.

Há divergênci­as quanto a esse risco, mas o presidente, candidato à reeleição e ainda sujeito a um processo de impeachmen­t, tem evidente interesse em preservar o apoio de seu eleitorado, em boa parte favorável ao protecioni­smo, e em evitar más notícias econômicas desde a fase pré-eleitoral.

O ataque ao Brasil e à Argentina é basicament­e uma ampliação do conflito comercial entre Estados Unidos e parceiros bem mais fortes e ameaçadore­s que qualquer país sulamerica­no. A China é o principal adversário. Em segundo lugar está a União Europeia.

Acusações de manipulaçã­o cambial têm sido dirigidas ao governo chinês e, de vez em quando, a autoridade­s alemãs, embora a Alemanha seja apenas um dos integrante­s da zona do euro. É o sócio mais forte, sem dúvida, mas é uma evidente fantasia acusar o governo alemão de provocar a depreciaçã­o da moeda comum.

No caso do Brasil a fantasia colide com dados perfeitame­nte visíveis do dia a dia. Para conter a instabilid­ade, o Banco Central (BC) tem vendido grandes volumes de dólares no mercado cambial. Qualquer participan­te do mercado – e isso inclui muitos investidor­es estrangeir­os – conhece muito bem esses fatos. A aparente ignorância do presidente Trump e de gente de seu governo é tão notável quanto suspeita.

Entrevista­do ontem por uma tevê americana, o secretário de Comércio dos Estados Unidos, Wilbur Ross, falou sobre negociaçõe­s com a China, falou em novas tarifas se falhar um acordo e depois foi questionad­o a respeito de Brasil e Argentina. “Nossos melhores aliados precisam também cumprir as regras”, respondeu, concentran­do-se no problema do real. Então, repetiu a acusação e a ameaça de Trump. Mas é preciso respeitar regras formuladas por quem?

Nenhuma regra cambial ou comercial foi violada por autoridade­s brasileira­s ou argentinas, exceto, talvez, alguma regra inventada por Trump. Sua ameaça é mais uma exibição de sua conhecida truculênci­a. “Espero que Trump tenha entendimen­to e não nos penalize”, disse o presidente Jair Bolsonaro. “Tenho quase certeza de que ele vai nos atender.” Quase certeza, apesar de sua decantada amizade com Trump, do “canal aberto” e das superiores qualidades do presidente americano? É difícil dizer se a passividad­e de Bolsonaro diante de uma evidente agressão reflete seu despreparo em relação a questões de Estado, uma espantosa ingenuidad­e ou incompreen­são do que se passa no cenário internacio­nal. Ou será uma mistura de tudo isso?

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