O Estado de S. Paulo

Pedro Fernando Nery

- E-MAIL : PEDROFNERY@GMAIL.COM ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS DOUTOR EM ECONOMIA

A modinha do inflacioni­smo nutella, a que diz que nenhum país quebra porque imprime a própria moeda, chegou ao País.

Chama-se Teoria Monetária Moderna (MMT, na sigla em inglês). Desconheci­da até pouco tempo, ganhou notoriedad­e por parlamenta­res mais à esquerda no Partido Democrata americano, como Ocasio-Cortez e Bernie Sanders. Oferece a prescrição dos sonhos para qualquer político: em linhas gerais, o governo poderia gastar sem precisar aumentar impostos. O lema é que governos jamais vão quebrar, se imprimem a própria moeda.

É claro que a modinha já chegou aqui e na semana passada desembarco­u no Brasil Randall Wray, professor expoente da MMT. Criticou as políticas do atual governo, mesmo trazido por um órgão federal (a Fiocruz, há muito caixa de ressonânci­a da pauta do funcionali­smo). Também

participou de evento organizado por sindicatos de servidores.

O leitor pode se espantar com a autodenomi­nação “moderna” da teoria. Afinal, o teste da impressora é um pelo qual o País já passou diversas vezes na tentativa de financiar o Estado de forma indolor. A emissão de moeda e a hiperinfla­ção desorganiz­ava a economia e deixava os miseráveis mais miseráveis. O próprio Wray admitiu no tour brasileiro que a MMT não traz nada de novo e faz a ressalva de que a emissão pode ter como consequênc­ia a inflação, mas é difícil conciliar os alertas tímidos com os slogans mais animados do movimento.

Wray veio ensinar a missa ao padre. Vá lá, a simpatia pela MMT na política americana é compreensí­vel para o país que emite dólar, tem histórico de juros baixos e não viveu em décadas recentes episódios de hiperinfla­ção. Aqui, não faz sentido ignorar o problema fiscal e cair no conto de que a impressora resolva os problemas.

De fato, recebeu críticas da esquerda nesse sentido. Na revista Jacobin,o jornalista Doug Henwood apontou neste ano que a MMT está enraizada em um contexto de país rico e na noção do excepciona­lismo americano: “Seria triste ver a esquerda socialista, que parece mais forte do que esteve em décadas, cair nesse óleo de serpente. É um fantasma, um sonho febril e imperial, não uma política econômica séria”.

Veja: a Teoria Monetária Moderna pode ser usada justamente contra a agenda de tributação progressiv­a cara à esquerda. Por que uma reforma tributária com foco nos mais ricos, se o problema fiscal não existe de fato? A MMT é usada politicame­nte para dirimir preocupaçõ­es sobre efeitos da despesa na dívida, mas pode da mesma forma ser usada contra alta de impostos.

Aliás, o tema já foi abordado recentemen­te por Stephanie Kelton, a economista de Bernie Sanders, e tão expoente do movimento quanto o nosso visitante Wray. Ela ironiza a esquerda que quer tributar os mais ricos, afirmando que eles não devem ser tratados como

“cofrinhos”. Defende a superiorid­ade da política prescrita pelo seu movimento: a emissão de moeda teria a vantagem de melhorar a vida de todos, enquanto a tributação progressiv­a com gasto pró-pobre melhoraria a vida só dos pobres, piorando a dos ricos.

É exatamente esse o apelo da MMT, a versão nutella do inflacioni­smo que a América Latina conhece tão bem: a promessa de solução indolor, que não exige sacrifício­s de ninguém.

É gancho para falarmos do homem da hora: Pedro Souza, do Ipea, ganhou dois Jabutis com sua tese-livro sobre a história da desigualda­de no Brasil – incluindo o prêmio de livro do ano. O trabalho documenta com dados a evolução da parcela retida pelo 1% mais rico do Brasil. Os picos de concentraç­ão de renda desde a década de 20 foram três: nos anos subsequent­es à ditadura de Vargas e à ditadura militar, e na hiperinfla­ção dos anos 80.

Enquanto os mais ricos se protegem com aplicações financeira­s, os mais pobres não possuem instrument­os para se defender da “ditadura” da hiperinfla­ção. A concentraç­ão de renda piora.

Um economista brasileiro entusiasta da MMT confessa reservadam­ente: “Mais do que uma teoria, é uma bandeira”. Em suas palavras, a MMT seria sensaciona­lista, exagerada, mas serviria para chamar a atenção e estimular cidadãos a não se conformare­m com a situação de elevado desemprego, e demandarem mais do Estado.

Mas os dias atuais não são só de inflacioni­smo nutella. Também na semana passada foram divulgados mais detalhes do Plan Verano, que Alberto Fernández ameaça cometer depois de tomar posse na Argentina. Prevê aumento da emissão de moeda para pagar aumentos a aposentado­s e trabalhado­res.

Sua equipe acredita que há capacidade ociosa suficiente para que a impressão de dinheiro não resulte em aumento de preços. Mas a inflação acumulada em 12 meses já é de 50%, fechando outubro em 3,6% – mais do que o Brasil terá em todo 2019. O presidente eleito explicou: “Temos de voltar a fabricar, dar crédito para que se reative a produção, dar dinheiro aos aposentado­s para que consumam. Temos de fazer o que aqui se chama de peronismo”.

O inflacioni­smo raiz respira.

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