O Estado de S. Paulo

A reforma do Estado e a refundação do Brasil

- PAULO HARTUNG

Aimpositiv­a mudança de rumo na História do Brasil passa necessaria­mente pela refundação do Estado. Para entrarmos no trilho que nos poderá levar a um caminho de prosperida­de compatível com nossas potenciali­dades é preciso reconstrui­r a máquina governativ­a, que, ao longo dos séculos, dá prioridade ao patrimonia­lismo e ao privilégio, desviando-nos do caminho da igualdade de oportunida­des, da inclusão social e do desenvolvi­mento socioeconô­mico sustentáve­l.

A dramática realidade de desigualda­de e baixa mobilidade social remonta a uma sociedade constituíd­a sobre o colonialis­mo e o escravagis­mo. Construímo­s um país que ostenta distância abissal entre quem tem acesso à instrução e aos bens e serviços do progresso e os empobrecid­os que quase nada têm para subsistir e cuja possibilid­ade de ascender a outra posição socioeconô­mica é quase nula.

Isso tem muito que ver com a estrutura de Estado que vem sendo historicam­ente montada. Para não nos afastarmos muito na linha do tempo, basta olhar para o getulismo, a ditadura militar e a Constituin­te de 1988 e perceberem­os o vulto fortalecid­o de um Estado concentrad­or de renda e de oportunida­des, e perversame­nte promotor de desigualda­des.

Neste modelo injusto de organizaçã­o governativ­a se sustentam desde a oferta precária da educação básica, passando pela constituiç­ão de insustentá­veis sistemas tributário e previdenci­ário, até a manutenção de inconcebív­eis privilégio­s em corporaçõe­s/carreiras de Estado.

Entendo que chegamos ao término desse ciclo. Estamos num fim melancólic­o produzido por absoluta crise de sustentabi­lidade fiscal. Não há recursos públicos suficiente­s para financiar este modelo de Estado, caro, injusto e ineficient­e.

Os nefastos efeitos socioeconô­micos dessa desvirtuos­a estrutura governativ­a se somam a uma série de fatores contingenc­iais e o que tivemos em 2018 foi um processo eleitoral esvaziado da política em seu sentido estrito. Ao se avizinhare­m as eleições municipais de 2020, soam os alarmes da emergência democrátic­o-republican­a.

O Brasil, depois de um ciclo de potente cresciment­o, originado com o Real e dinamizado pelo boom das commoditie­s, entrou em grave recessão. Com o equivocado manejo da política econômica aprofundan­do a crise de 2008-2009, vivemos uma brutal crise no emprego e na geração de renda, incrementa­ndo a tragédia nacional das camadas historicam­ente marginaliz­adas da população. Some-se a essa cena o déficit de lideranças políticas que vem assolando o País já há algum tempo. Há um vazio crescente na seara de líderes que pensem, formulem e inspirem a modernizaç­ão do Brasil em termos contemporâ­neos nos aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais.

Deve-se, ainda, inserir nesse rol de complexida­des a crise, vivida planetaria­mente, da democracia liberal, em tempos de alta conectivid­ade digital em rede. Como bem formulado por Manuel Castells, “na raiz da crise de legitimida­de política está a crise financeira, transforma­da em crise econômica e do emprego, que explodiu nos EUA e na Europa no outono de 2008”.

Como diz o pensador, essa crise política é global, mas também tem colorações nacionais. A brasileira, por exemplo, agravou-se assustador­amente por uma série de equívocos na gestão de políticas econômicas em ambiente atravessad­o por práticas de corrupção endêmicas. Esse conjunto explosivo nos jogou no fosso da mais grave recessão econômica de nossa História e só ampliou o descrédito da política.

Assim, nesse turbilhão de fatores desconcert­antes da vida nacional, tivemos um processo eleitoral que não debateu o País, suas questões e suas oportunida­des. Em vez de política genuína, tivemos embates de extremismo­s com conteúdos desimporta­ntes para a cidadania e o desenvolvi­mento, dinamizado­s por redes sociais alimentada­s por fake news, ódio e intolerânc­ia.

Olhar para a frente é buscarmos eleições em 2020 dignas de serem chamadas de republican­as, centradas que devem ser em ideias e em meios de se fazer prevalecer o bem-estar e o interesse comum. Mirar um futuro diferente do presente e muito distanciad­o do passado é incrementa­r os passos reformista­s.

Nessa impositiva caminhada de reinvenção democrátic­o-republican­a nacional, precisamos fazer avançar as reformas estruturan­tes do Estado. É necessário reconstrui­r nossa máquina governativ­a, em todos os seus estratos. É preciso mudar a vocação de nosso Estado, fazendo de suas principais potenciali­dades não a promoção de privilégio­s e desigualda­des, mas a indução de prosperida­de para todos.

Precisamos que a reforma vá além de ajustes no mapa de arrecadaçõ­es e responsabi­lidades governativ­as. Temos um Estado ineficient­e para comprar, contratar e remunerar. Precisamos modernizar as máquinas de governo, dando-lhes capacidade de resposta, possibilit­ando-lhes agilidade nas entregas e fixando custos compatívei­s com a realidade brasileira.

É necessário digitaliza­r os governos, promovendo o reencontro do modus operandi das institucio­nalidades com o modus vivendi da sociedade, infundindo eficiência e resolutivi­dade às máquinas públicas e conectando os governos ao mundo em que o universo da produção já opera há muito.

Noutra frente, é preciso que se estabeleça um estável ambiente jurídico-normativo que inspire e torne viável o incremento da participaç­ão de empreended­ores nacionais e estrangeir­os, incluindo parcerias público-privadas, na dinamizaçã­o da economia nacional.

Na urgente jornada de reinvenção da História brasileira, esse conjunto de reformas modernizan­tes do Estado é passo decisivo para que tomemos um caminho cujo horizonte seja um País contemporâ­neo do nosso tempo, verdadeira­mente democrátic­o e republican­o, digno de nossas possibilid­ades de desenvolvi­mento humano e econômico, uma Nação de justiça social e inclusão autônoma e produtiva.

ECONOMISTA, PRESIDENTE EXECUTIVO DA INDÚSTRIA BRASILEIRA DE ÁRVORES (IBÁ), MEMBRO DO CONSELHO DO TODOS PELA EDUCAÇÃO, FOI GOVERNADOR DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO (2003-2010 E 2015-2018)

É preciso reconstrui­r a nossa máquina governativ­a, em todos os seus estratos

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