O Estado de S. Paulo

Trump e Johnson

- GILLES LAPOUGE EMAIL: GILLES.LAPOUGE@WANADOO.FR / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZ­OU É CORRESPOND­ENTE EM PARIS

Em Londres, hoje e amanhã, a cúpula da Otan celebrará os 70 anos da aliança. São previstos alguns salamalequ­es, champanhe e muitos sorrisos, acompanhad­os de umas tantas caretas, pois a Otan é uma idosa que vai mal de saúde. Multiplica­m-se as brigas e malentendi­dos.

Os EUA gostariam de se livrar do ônus financeiro que é a Otan. O turco Recep Tayyip Erdogan fará seu discurso favorito: ameaçará despejar sobre a Europa alguns milhares de refugiados sírios que ele usa como arma de guerra. Quanto a Emmanuel Macron, o francês explicou, do alto de seu Olimpo, que a Otan está em estado de “morte cerebral”. Será necessário explicar isso na presença de todos os “cérebros mortos” que estarão na reunião.

Mas, em segundo plano, haverá conversas singulares. Donald Trump se encontrará com o premiê britânico, Boris Johnson, que deve garantir, a menos que ocorra algum acidente no caminho, a saída de seu país da União Europeia. Nesse ponto, os dois líderes concordam: qualquer coisa que possa enfraquece­r a UE encanta tanto o americano quanto o britânico.

Os dois se conhecem e se adoram. E o pior é que são parecidos. Têm várias caracterís­ticas em comum: cabelos caprichoso­s que crescem comicament­e sobre a testa e, mais importante, o mesmo gosto por mentiras, ainda que elas sejam refutadas de imediato. Três dias após os ataques da Ponte de Londres, Johnson acumulou mentiras sobre o sistema britânico de indulto a presos.

Se Trump é mais ou menos mentiroso que Johnson, isso poderia ser tema de um reality show. Assim como Boris, Donald não disfarça suas mentiras. Ele as proclama em tuítes. Alguns dias depois, diz o contrário, sem nenhum sinal de arrependim­ento. Na primeira vez em que se encontrou com Macron, disse ao mundo, pelo Twitter, que o homem era um encanto e seria um grande presidente para a França. Macron, que gosta de quem gosta dele, engoliu. Depois, Macron se tornou um cara insuportáv­el. E, além disso, Brigitte, a mulher de Macron, era velha e feia. Um pouco mais tarde, Trump se rasgou em elogios a Macron, e assim por diante. O líder da Coreia do Norte em poucos meses passou da condição de “gordinho cretino e mal penteado” à de campeão da modernidad­e e gênio político.

O mesmo se repete em relação a Johnson, que é um homem de destaque, um premiê “magnífico”! A propósito, a imprensa internacio­nal disse que Johnson era o “Trump britânico”. É bom ouvir essas coisas. E a sequência é evidente: assim que o Brexit for confirmado, o americano assinará um acordo comercial bilateral “magnífico” com Londres. Verdadeira lua de mel.

Mas será que esse romance vai durar? Há três semanas, Trump deu a entender que a assinatura de Londres e Bruxelas em certos capítulos do “divórcio” não valeria nada e, nessas condições, o “acordo” que prometera a Johnson se tornaria “problemáti­co”. Esta é uma das questões que Trump e Johnson devem discutir hoje ou amanhã em Londres, nos bastidores da cúpula.

É provável que essa amarga demonstraç­ão de mau humor tenha sido esquecida, pois os dois países têm o mesmo interesse em assinar um acordo bilateral – apenas para irritar a UE, pela qual sentem a mesma paixão. Mas os dois são tão mentirosos que a dúvida persistirá até a assinatura do “magnífico acordo bilateral” prometido por Trump.

Uma questão secundária: qual deles parece mais hábil na mentira, o britânico ou o americano? Para mim, já posso dizer que Johnson me parece mais talentoso. Porque Trump dispõe de um vocabulári­o tão pobre quanto um tuíte, um rudimento, um fragmento de linguagem, uma miséria comovente. Depois de dizer “lindo”, “desprezíve­l”, “maravilhos­o” e “cretino”, acabou seu dicionário.

Além disso, o britânico é de uma família culta e brilhante. Assim, suas mentiras são mais bem embaladas que as de Trump, que as profere sem o menor talento. A voz de Johnson, que ainda reflete os espelhos de Eton e se ilumina com algumas linhas de humor, é mais sedutora e divertida, e é por isso que as mentiras de Trump têm apenas uma pequena expectativ­a de vida, enquanto uma boa mentira assinada por Johnson pode durar alguns dias.

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