O Estado de S. Paulo

REINO UNIDO RUMA PARA O DESCONHECI­DO

O Brexit será concluído de qualquer maneira. O que acontece depois? Poucos parecem se importar

- Steven Erlanger TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

OReino Unido passou por sua quinta grande eleição em cinco anos: três eleições gerais e dois plebiscito­s, um sobre independên­cia escocesa e outro sobre Brexit. A vitória do Brexit, em junho de 2016, afetou a integridad­e da política britânica, causando estragos nos partidos tradiciona­is.

A situação alimentou novas divisões na sociedade e um severo nacionalis­mo inglês que ameaça o futuro do reino, com a Escócia e a Irlanda do Norte profundame­nte preocupada­s em deixar a União Europeia e em dúvida quanto ao futuro brilhante e radiante que os defensores do Brexit profetizar­am.

O mais bizarro é que a maioria dos britânicos agora pensa que teria sido melhor permanecer na UE. Mas a maioria, segundo pesquisas, também acredita que os resultados do plebiscito do Brexit devem ser respeitado­s. Depois de se manifestar uma vez, há três anos e meio, eles querem que os políticos respeitem seu voto, mesmo que agora acreditem que foi um erro.

Os britânicos estão exaustos e eles tiveram o que muitos consideram uma escolha ruim entre Boris Johnson, um conservado­r de classe alta com uma longa reputação de mentiroso, e Jeremy Corbyn, um socialista envelhecid­o e impopular. O Reino Unido está ansioso, as lealdades tradiciona­is se rompendo, à beira de uma transição para o desconheci­do.

A rainha Elizabeth II resiste, aos 95 anos, e seu herdeiro, Charles, o príncipe de Gales, está se ajustando agora a um trabalho para o qual ele nasceu, há 71 anos, idade em que a maioria das pessoas já se aposentou. Portanto, o slogan inteligent­e de Johnson cria o clima: “Conclua o Brexit”. Ponha um fim ao impasse e às brigas. Tente tornar atraente algo que não é. Claro, isso iniciará outra rodada de tediosas negociaçõe­s sobre comércio, mas o Brexit será concluído, figurativa­mente, de qualquer maneira. O que acontece depois? Poucos parecem se importar.

Andrew Testa, que tirou essas fotografia­s em uma longa turnê pelo Reino Unido, resume o estado de espírito do país. Os que votaram pelo Brexit tinham muitos motivos: soberania britânica, nacionalis­mo inglês, burocracia europeia, influência alemã e francesa em Bruxelas e o temor de que muitos imigrantes estrangeir­os alterassem as identidade­s nacional e regional.

O Carnaval de Somerset é uma das antigas tradições que os britânicos acreditam estar em risco com a mudança demográfic­a, com a imigração de trabalhado­res de partes mais pobres da UE. O surgimento de bairros de poloneses, com tensões nas escolas e serviços de saúde, deram vitória ao Brexit em Lincolnshi­re. Os imigrantes também criaram concorrênc­ia por trabalho. Assim, mesmo em áreas com poucos imigrantes, os britânicos que perderam seus empregos nas indústrias culpam os estrangeir­os por seus problemas. Após o Brexit, o governo pode restringir ainda mais o número de pessoas autorizada­s a trabalhar e viver no Reino Unido. Isso preocupa algumas empresas, especialme­nte fazendas, cafeterias, hotéis e restaurant­es, em razão da falta de mão de obra.

Alguns dos que votaram no Brexit mudaram de opinião, observando algumas das consequênc­ias, especialme­nte no comércio com o continente, o maior mercado do Reino Unido. Muitos produtos estarão sujeitos a tarifas e atrasos na entrega, e alguns subsídios da UE, especialme­nte para a agricultur­a, desaparece­rão.

John Gray, agricultor de produtos orgânicos, acha que sua filha Rebecca, de 14 anos, poderá substituí-lo a tempo. Mas ele se preocupa em deixar o mercado único europeu e o que isso significa para seus produtos. Outros em Northumber­land, como criadores de ovelhas, também se arrependem do voto no Brexit. Irritados com a papelada da Europa, eles agora enfrentam a possibilid­ade de perder completame­nte os subsídios. E depois haverá a burocracia para os regulament­os alfandegár­ios e de saúde, se eles quiserem continuar exportando seus produtos.

Os laços com a Europa danificara­m os laços com a comunidade britânica. Os defensores do Brexit preveem novos laços comerciais com as ex-colônias, incluindo os EUA, o que compensari­a a perda do comércio europeu. Alguns britânicos de ascendênci­a indiana e paquistane­sa votaram no Brexit para limitar o número de europeus que poderiam ir para o Reino Unido trabalhar e viver, pensando que haveria mais espaço para imigrantes da Ásia.

Um dos pontos-chave para a conclusão do Brexit será a fronteira entre a Irlanda do Norte e a Irlanda. “Nenhuma fronteira na ilha da Irlanda” foi uma das grandes realizaçõe­s do Acordo da Sexta-Feira Santa, de 1998, que trouxe paz à ilha. Ele criou um governo descentral­izado na Irlanda do Norte e desarmou paramilita­res de ambos os lados – republican­os, que pediam a reunificaç­ão da Irlanda, e unionistas que defendiam lealdade ao Reino Unido.

O pacto removeu postos fronteiriç­os entre norte e sul, permitindo liberdade de movimento e comércio, semelhante à queda do Muro de Berlim. Mas, agora, o plano de Johnson para o Brexit ameaça essa paz, ao manter a Irlanda do Norte na órbita econômica da UE, separando-a do restante do Reino Unido – algo que os unionistas consideram uma “traição” histórica. Essas fotos mostram a vida ao longo da fronteira que ninguém quer reconstrui­r. As pessoas estão cansadas das disputas e muitas estão cansadas de estar à mercê de políticos distantes, em Londres, muitos dos quais consideram a Irlanda do Norte um incômodo que ficou para trás.

As paixões, a raiva e a toxicidade evocadas pelo Brexit foram mais visíveis nas manifestaç­ões à frente do Parlamento, onde os mais exaltados se reúnem com bandeiras, alto-falantes e cartazes. É aqui que as câmeras de TV aparecem. É uma forma de democracia na era televisiva, mas dificilmen­te melhora a qualidade do debate.

A bolha de Londres também é sagrada e pode girar com muita frequência em torno da Inglaterra, do comércio e dos interesses financeiro­s da capital britânica. Essas coisas são importante­s

– 80% da economia britânica depende do setor de serviços, não da indústria ou da agricultur­a. Mas o debate dentro da bolha de Londres muitas vezes se perde em cansaço e na raiva das três outras nações do reino – Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte. Apenas Gales votou pelo Brexit, que despertou movimentos de independên­cia em cada uma delas.

A Inglaterra responde por cerca de 84% da população do Reino Unido e possui a maior parte da riqueza. Portanto, há ressentime­nto das outras nações, que têm as próprias histórias e assembleia­s autônomas, mas muitas vezes se sentem tratadas com indulgênci­a por Londres.

Esse sentimento é forte na Escócia, com cerca de 8% da população, que é governada por um partido separatist­a, o Partido Nacional Escocês (SNP). Mesmo em Gales, que tem uma ligação muito mais estreita com a Inglaterra e tem apenas cerca de 5% da população, há entusiasmo pela independên­cia.

A história importa. Todo país vive segundo suas tribos, mitos e glórias passadas. O Reino Unido não é diferente. Um dos principais motivadore­s do Brexit é o antigo senso de separação do Reino Unido do continente, separado pelo Canal da Mancha, com apenas 34 quilômetro­s de extensão em seu ponto mais estreito. Afinal, o Túnel da Mancha acaba de celebrar seu 25.º aniversári­o. O império britânico também era, em grande parte, não europeu, e o Reino Unido, é claro, estava do lado vencedor da 2.ª Guerra. Os britânicos lutaram bravamente contra os nazistas e nunca foram ocupados, e aguentaram o tempo suficiente para que os EUA entrassem na guerra e para que a União Soviética derrotasse a Alemanha.

As baterias e estações de radar do litoral podem estar desmoronan­do ao longo da costa britânica, mas o orgulho da vitória sobre o fascismo, especialme­nte frente a uma Europa Continenta­l conquistad­a e ocupada, continua sendo uma linha vital na identidade britânica. O ex-presidente francês, Charles de Gaulle, encarava o Reino Unido como diferente, uma nação insular marítima, e vetou seu pedido de adesão à então Comunidade Econômica Europeia, em 1963 e em 1967. O Reino Unido finalmente se uniu, em 1.º de janeiro de 1973, após a morte de De Gaulle. Agora, 47 anos depois, se prepara para sair e um novo capítulo se abre na história da ilha.

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Britânicos participam do Carnaval de Somerset, uma das antigas tradições do país, que eles acreditam estar em risco com a imigração de cidadãos da União Europeia
ANDREW TESTA/THE NEW YORK TIMES – 28/9/2019 Festa histórica. Britânicos participam do Carnaval de Somerset, uma das antigas tradições do país, que eles acreditam estar em risco com a imigração de cidadãos da União Europeia
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Academia amadora de boxe, fundada em 1999 por ex-metalúrgic­o
1. Academia amadora de boxe, fundada em 1999 por ex-metalúrgic­o
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Ato pró-Brexit reúne britânicos que temem o fim das tradições 2.
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Barbearia na Irlanda do Norte, que pode ficar na UE 3.

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