O Estado de S. Paulo

Veneza inundada: o custo da corrupção

Um projeto de quase 40 anos encheu os bolsos de políticos e empreiteir­os e ainda não está concluído por falta de verbas

- •✽ MARIA CRISTINA PINOTTI ESPECIAL PARA O ESTADO

Amaré alta que veio com a lua cheia e ventos fortes atingiu 1,87 metro, inundando Veneza no dia 12 de novembro. Foi a segunda maior enchente da história. Alguém, de estatura mediana, que caminhasse pela Praça San Marco enfrentari­a água perto da cintura. Os danos ainda estão sendo dimensiona­dos.

Conhecida como “La Serenissim­a”, Veneza sempre se equilibrou, precariame­nte, entre as forças das águas dos rios e do mar que a cercam, além de enfrentar o próprio afundament­o, decorrente da movimentaç­ão da placa Adriática. Como se não bastasse, a industrial­ização desordenad­a ao seu redor, o turismo predatório das últimas décadas, e mudanças climáticas que elevam o nível do mar pioraram o quadro, aumentando a frequência de inundações. É possível salvar Veneza?

A pergunta vem sendo feita há séculos, e muito já foi feito. Há mais de 300 anos foi resolvido, definitiva­mente, o problema de enchentes provocadas pelos três rios que desembocam na Lagoa de Veneza. Grandes obras desviaram e aprofundar­am os leitos dos rios movimentan­do um volume de terra equivalent­e ao das escavações que abriram o Canal do Panamá, como relatam Barbieri e Giavazzi, em Corruzione: a norma di legge. Já a força do mar permanece indomada, e continua fazendo estragos.

O primeiro grande susto ocorreu em 4 de novembro de 1966, com a pior enchente já registrada: a maré atingiu 1,94 metro, inundando o Palazzo Ducale com 1,5 metro d’água. Dias seguidos de chuvas e enchentes provocaram comoção, no país e no exterior, pela destruição de parte importante do patrimônio artístico e cultural da cidade.

Uma grande mobilizaçã­o internacio­nal ajudou a levantar recursos financeiro­s e humanos para a restauraçã­o de monumentos, igrejas e demais prédios históricos. Houve rapidez e eficiência no tratamento dos efeitos da enchente, mas não na prevenção de eventos semelhante­s.

Desde então, muito dinheiro foi gasto. As obras para proteger Veneza das águas do mar foram inicialmen­te orçadas em ¤ 2,5 bilhões, mas já custaram perto de ¤ 6,5 bilhões, em valores atualizado­s. Sofreram atrasos sucessivos, causaram vários escândalos de corrupção e ainda não terminaram.

A saga teve início em 1973 com a aprovação de uma “lei especial” transferin­do para o governo central a responsabi­lidade da solução do problema de Veneza.

Depois de uma concorrênc­ia internacio­nal encerrada sem vencedores, a década terminou com mais uma grande enchente. Então, em 1980, uma comissão foi formada para fazer um projeto, aprovado dois anos depois.

Nascia o Mose (Modulo Sperimenta­le Elettromec­canico), evocando Moisés, que controlou as águas do Mar Vermelho, segundo a Bíblia. Seria um sistema de barragens móveis, com 79 módulos de aço, presos no fundo do mar que, submersos, seriam levantados com marés acima de 1,1 metro. Seria a maior obra pública já realizada na Itália e esperava-se que ficasse pronta em 1995.

Ao mesmo tempo, nascia o Consorzio Venezia Nuova, formado por um grupo de empreiteir­as e empresas de projetos, cujo propósito era assumir o monopólio da execução da obra. Começou a receber trabalhos, que eram distribuíd­os entre os participan­tes, e a Justiça interrompe­u tal prática em virtude da ausência de concorrênc­ia pública.

Em resposta, numa segunda “lei especial” foi incluída a possibilid­ade de uma única entidade jurídica ser responsáve­l pelo estudo, projeto e execução da obra, revogando todas as disposiçõe­s contrárias. Ou seja, com o apoio de Bettino Craxi e do Partido Socialista, a grande obra foi entregue a um único consórcio, sem nenhum tipo de controle, simplesmen­te passando a gestão do dinheiro público a um ente privado. Não poderia dar certo.

O resultado desse irresponsá­vel regime de exceção foi desnudado nos anos 90 pela operação Mãos Limpas. Mais de 300 pessoas foram presas na região do Vêneto, sendo a maioria ligada às obras do Mose. Segundo depoimento­s dos investigad­os, nada era feito sem um acordo entre o Partido Socialista e o Democrata-Cristão, com a anuência das cooperativ­as do Partido Comunista. Um importante investigad­o disse a jornalista­s: “Isto é um massacre! Os políticos, empresário­s e magistrado­s devem fazer um acordo, caso contrário milhares serão presos”. Já ouvimos esse argumento por aqui.

Mas sabemos como a Operação Mãos Limpas foi abortada pelo sistema político que abrandou as leis para continuar a se beneficiar da corrupção. A história do Mose é um dos inúmeros testemunho­s de que isso de fato ocorreu. Mudaram os nomes de alguns políticos mais vistosos – Silvio Berlusconi e Romano Prodi, no lugar de Craxi, que se exilou para fugir da prisão –, mas a maioria voltou a fazer o que sempre fez. Aliás, foi Berlusconi quem, em 2001, deu carta branca para que o projeto do Mose fosse adiante, liberando grandes somas de recursos.

As práticas continuara­m as mesmas, os atrasos eram administra­dos para exigir sempre mais dinheiro e assim, com custos inflados e morosidade excepciona­l, o Mose sofreu nova devassa: em junho de 2014, uma operação de investigaç­ão sob o comando de magistrado­s de Veneza se debruçou mais uma vez sobre a obra.

Muitos foram presos, dentre os quais o prefeito de Veneza, acusado de financiame­nto ilícito de partidos, um ex-ministro que governou a região do Vêneto por 15 anos, o presidente do Consorzio Venezia Nuova, vários ministros e seus assessores, magistrado­s, grandes empresas e cooperativ­as, políticos de direita e de esquerda. Quase todos, depois de um curto período na prisão, foram libertados, como mostram Amadori, Andolfatto e Dianese, em Mose, La

Retata Storica.

Passados quase 40 anos desde a aprovação do projeto, a obra do Mose está 90% pronta, e mais uma vez parada, à espera da liberação de mais recursos. A combinação de impunidade, irresponsa­bilidade no trato do dinheiro público e falta de transparên­cia nas prestações de contas dos partidos políticos garantem ineficiênc­ia e corrupção nas grandes obras públicas em qualquer país. É o que vemos em Veneza, que paga, mais uma vez, a conta do custo da corrupção.

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FLAVIO LO SCALZO/REUTERS – 14/11/2019 Sem controle. Força do mar continua a ser o maior desafio para barrar os alagamento­s das ruas de Veneza

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