OIT capacita transexuais com curso de cozinha e poesia
Projeto Cozinha & Voz forma mais de 300 pessoas pelo País e registra 70% de taxa de inserção no mercado
A baiana Karolaine Ferreira, de 42 anos, nasceu menino, mas se reconhece como menina desde os 8 anos de idade. O mercado não concorda com a existência de transgêneros e os empurra para a informalidade. Karol sobreviveu os últimos anos de prostituição e bicos variados em São Paulo, até receber o primeiro registro na carteira de trabalho como ajudante no restaurante Arturito, da chef Paola Carosella.
Paola é uma das idealizadoras do programa Cozinha & Voz, promovido pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) em parceria com o Ministério Público do Trabalho. Contratou Karol após a primeira turma, realizada em São Paulo em outubro de 2017. De lá para cá, o programa deu capacitação como ajudante de cozinha a 333 homens e mulheres em situação de vulnerabilidade social (em sua maioria, transexuais) em cidades como Salvador e Campo
Grande. A última turma deste ano, com 25 mulheres e homens trans, foi concluída na última semana, no Rio de Janeiro, com a presença de Paola. A previsão é que ocorram 12 edições em 2020, confirmadas em São Paulo, Espírito Santo, Bahia, Distrito Federal e Rio Grande do Sul. Um plano de expansão para a Ásia também está em negociação.
Hoje, 70% dos alunos das últimas turmas estão no mercado de trabalho formal, contratados como pessoa física ou empreendendo como pessoa jurídica, explica Thaís Faria, oficial técnica regional da OIT e idealizadora do programa ao lado de Paola. Elas facilitam a ponte das pessoas trans com o mercado – seja Paola em contato com chefs pelo País, seja a OIT em contato com entidades como o Fórum de Empresas e Direitos LGBTI+. O Fórum reúne mais de 70 grandes empresas e tem entre seus compromissos a promoção de igualdade de oportunidades às pessoas LGBTI+.
Além de Karol no Arturito, Paola também emprega a cearense Emilly Rodrigues da Silva, de 38 anos, na cozinha do restaurante Mangiare. “Tem de estudar, tem de correr atrás. Ano que vem vou prestar o Enem. Para fazer gastronomia, lógico”, diz Emilly.
Há muita solidariedade e empatia no projeto, conta Paola, mas não filantropia. “Não gosto de falar em ‘ajudar’. Não é uma ONG. É uma oportunidade de trabalho”, afirma. “Não seria justo dizer que elas chegam e agarram (a oportunidade) com mais força do que outras pessoas. Mas aqui elas chegaram e agarraram.”
A determinação vem também do desejo de se ter um trabalho regular “para onde se possa ir e voltar todo dia”, diz Danielly Rocha, de 32 anos. Paraense residente no Rio, Danielly foi uma das alunas da turma encerrada na última semana. Após passar os últimos anos na informalidade, agora ela negocia uma vaga num restaurante em Copacabana.
Para Paola, mais do que treinar receitas, o Cozinha & Voz foca na disciplina exigida em negócios de alimentação. “Ensinamos como montar uma praça, como segurar uma tábua. O mais importante não é ensinar receita, mas o gestual profissional da cozinha.”
A poesia. Foi na cozinha da casa da chef que nasceu o programa, num encontro com Thaís Faria. Thaís já trabalhava pela OIT há nove anos em parceria com a Casa Poema, da poeta e atriz Elisa Lucinda e sua sócia Geovana Pires. Ao lado delas, levava o projeto Versos de Liberdade a jovens em regime de medida socioeducativa, mas perceberam que deveria haver uma formação técnica para o mercado.
Hoje, o Cozinha & Voz tem um formato mínimo com cinco dias de aulas de poesia e nove dias de cozinha, para cerca de 20 alunos. Paola dá algumas aulas, todas as outras contam com uma profissional treinada por ela, a chef Fernanda Cunha. E a poesia vem sempre antes. “Porque ela apazigua as emoções”, diz Paola.
Em um dia do projeto acompanhado pela reportagem no Senac Riachuelo, no Rio, uma oficina com declamação de textos revela a emoção despertada entre os alunos. Segundo Thaís, foi o diferencial apontado pela avaliadora internacional da OIT. “Ela disse coisas que a gente não percebia. Que o único indicador de sucesso do projeto não é o emprego. Porque as pessoas voltam para a família, param de usar drogas.”
Além de drogas e prostituição, grupos vulneráveis como esses também enfrentam rejeição na família. “Aos 15 anos, quando disse que queria me vestir como menina, minha mãe disse: ‘Ser gay tudo bem, mas travesti não!’”, conta a carioca Emilly Cristina, de 21 anos. Anos atrás, ela começou a tomar hormônios e, se era rejeitada em casa pela mãe, não seria diferente com o mercado de trabalho. Prostituiu-se por três anos e agora vive de fazer tranças afro. Depois do curso, decidiu trabalhar com cozinha.
Financiamento. Para colocar o Cozinha & Voz de pé em várias cidades, a OIT faz parcerias com entidades locais. Em São Paulo, as turmas foram realizadas na Faculdade Hotec. No Rio, no Senac. A depender do parceiro, o formato de aulas pode ser expandido. Em Goiânia, por exemplo, houve turma que durou três meses.
O dinheiro chega pelo Ministério Público do Trabalho, de multas trabalhistas aplicadas a empresas. A OIT estima ter destinado até agora cerca de R$ 600 mil ao projeto. E, se o dinheiro volta à sociedade, grupos marginalizados se sentem mais acolhidos. “Agora conheço os meus direitos. Estou bem esclarecida da vida”, diz Karolaine, despedindo-se da reportagem. É quase hora do almoço e vai começar o serviço na cozinha do Arturito.