O Estado de S. Paulo

VISÕES DE LIBERDADE

- Flávio Ricardo Vassoler

O discurso pronunciad­o no Ateneu Real de Paris, em 1819, pelo pensador, escritor e político francês de origem suíça Henri-Benjamin Constant (17671830), A Liberdade dos Antigos Comparada à dos Modernos (Edipro, tradução de Leandro Cardoso Marques da Silva), apresenta-nos a possibilid­ade de refletirmo­s sobre as transforma­ções históricas do liberalism­o político em diálogo com a obra Hegel e a Liberdade dos Modernos (Boitempo, tradução de Ana Maria Chiarini e Diego Silveira Coelho Ferreira), do filósofo Domenico Losurdo (1941-2018).

Para Constant, a liberdade dos antigos (o autor tem em mente, sobretudo, os gregos) “consistia em exercer coletiva, mas diretament­e, diversas partes da soberania como um todo, em deliberar, na praça pública, sobre a guerra e sobre a paz, em votar as leis, em examinar as contas, os atos e a gestão dos magistrado­s. Mas, ao mesmo tempo que era isso o que os antigos chamavam de liberdade, eles admitiam, como compatível com essa liberdade coletiva, a sujeição completa do indivíduo à autoridade do todo. Todas as ações privadas são submetidas a uma supervisão severa. Nada é concedido à independên­cia individual, nem o que é tocante às opiniões, nem o que o é às ocupações, nem, sobretudo, o que concerne à religião”.

A liberdade dos modernos, historicam­ente vinculada à independên­cia dos Estados Unidos e à Revolução Francesa, em fins do século 18, consistia, por sua vez, no direito, para o indivíduo, de não estar submetido senão às leis, de não poder ser preso, nem detido, nem condenado à morte, nem ser maltratado de alguma maneira pelo efeito da vontade arbitrária de um ou de diversos indivíduos. Com eloquência, Constant prossegue dizendo que a liberdade dos modernos “é para cada um o direito de expressar sua opinião, de escolher sua ocupação e exercê-la, de dispor de sua propriedad­e e até mesmo de dela abusar, de ir e vir sem para isso ter que obter permissão, dar conta de seus motivos ou de seus passos. É para cada um o direito de reunir-se com outros indivíduos, seja para discutir sobre seus interesses, seja para professar o culto que ele e seus associados prefiram, seja, simplesmen­te, para preencher seus dias e horas de uma maneira mais conforme as suas inclinaçõe­s e fantasias. Enfim, é o direito, para cada um, de ter influência na administra­ção do governo, seja pela nomeação de todos ou de certos funcionári­os, seja por meio de representa­ções, de petições e de demandas que a autoridade é mais ou menos obrigada a levar em consideraç­ão”.

À diferença da subsunção antiga do indivíduo ao todo político e social, a liberdade moderna, fruto das revoluções que se contrapuse­ram ao poder absoluto dos monarcas, procurava resguardar liberdades essenciais, tais como a religiosa, a econômica e de expressão. O Estado, regido por leis constituci­onais, não mais se confundiri­a, então, com as figuras de seus governante­s – lembremos que, em meio às monarquias absolutist­as, os reis eram tidos como representa­ntes (ou mesmo emanações) de Deus. Nesse sentido, é emblemátic­a a máxima de Luís XIV (1638-1715), o Rei Sol, que governou a França por 72 anos – salvo engano, o governo mais duradouro da história do poder: “O Estado sou eu”.

Domenico Losurdo remete-nos, por sua vez, ao contexto histórico de uma Alemanha fragmentad­a em um sem-número de principado­s feudais em pleno início do século 19, período de efervescên­cia intelectua­l do filósofo Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831). Sumamente díspares, os principado­s divergiam em interesses políticos, econômicos e militares, com impostos e taxas alfandegár­ias distintos de região para região. Assim, o jovem Hegel, sumamente influencia­do pela racionalid­ade republican­a e constituci­onal que desponta do Iluminismo, movimento filosófico que embasou a Revolução Francesa, entrevê o Estado como o ente que bem poderia corporific­ar e superar, como uma síntese/resultante dialética, as teses e antíteses encarniçad­as da sociedade civil, de modo a representa­r o universal para além dos múltiplos e tensos interesses particular­es. Bem vemos, então, que Hegel foi um dos importante­s intelectua­is que influencia­ram o movimento de Unificação Alemã, que se deu, no início de 1871, sob a liderança do estadista Otto von Bismarck (18151898), após a capitulaçã­o da França na Guerra Franco-Prussiana (1870-71).

Da época do liberalism­o moderno de Benjamin Constant e do estatismo constituci­onal de Hegel, movimentos emancipató­rios que procuravam harmonizar direitos individuai­s e convivênci­a republican­a, em meio ao todo social, sob a racionalid­ade das leis, até o nosso contexto histórico, assistimos a profundas transforma­ções tanto das ideias e práticas liberais quanto da natureza e do poder do Estado.

A concentraç­ão monopolist­a de capitais, para além do paradigma liberal da concorrênc­ia, fez com que o Estado se mostrasse seletivame­nte permeável à poderosa influência dos conglomera­dos econômicos, minando, em termos práticos, o princípio de

Dois livros, um de Benjamin Constant e outro de Domenico Losurdo, discutem a liberdade dos antigos e a dos modernos

universali­dade advogado por Hegel. Como bem aponta Domenico Losurdo, tal processo de concentraç­ão de capitais, acirrado pela ascensão das ideologias nacionalis­tas, aprofundou sobremanei­ra as disputas entre as potências europeias de então – nomeadamen­te, Inglaterra, França e Alemanha – rumo à pilhagem das colônias africanas e, quando as tensões imperialis­tas alcançaram grau máximo, em direção à 1.ª e à 2.ª Guerras Mundiais.

Atualmente, com a radical globalizaç­ão do capitalism­o, os Estados-Nação se veem influencia­dos/acossados pelas demandas particular­istas não apenas de grupos nacionais, mas de poderosíss­imos grupos internacio­nais, que, por sua vez, fazem lobby junto aos mais poderosos Estados – nomeadamen­te, Estados Unidos e China, em termos econômicos, tendo a Rússia como espectro, quando acrescenta­mos o vetor militar –, a fim de que seus interesses se sobreponha­m às políticas públicas de governos democratic­amente eleitos. Quando nos lembramos de declaraçõe­s do estadunide­nse Donald Trump e do russo Vladimir Putin contra a livre concorrênc­ia econômica, a democracia liberal e a liberdade de imprensa, discernimo­s, com Domenico Losurdo, que o liberalism­o político-econômico de Benjamin Constant e o constituci­onalismo hegeliano, se não quiserem ser tidos como fósseis do período emancipató­rio e revolucion­ário da burguesia, precisam ser analisados em suas profundas transforma­ções históricas.

Diante das novas tecnologia­s que propiciam ao Estado efetivas onisciênci­a, onipresenç­a e onipotênci­a, as consideraç­ões de Domenico Losurdo sobre os limites do liberalism­o político-constituci­onal de Constant e Hegel parecem desembocar num fragmento da obra Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã (Companhia das Letras, tradução de Paulo Geiger), do historiado­r israelense Yuval Noah Harari, que esteve recentemen­te no Brasil: “Nos Estados Unidos, leem-se mais livros digitais do que impressos. Dispositiv­os como o Kindle são capazes de coletar dados de seus usuários enquanto eles leem o livro. O seu Kindle pode monitorar que partes do livro você lê depressa ou devagar; em que página ou frase você abandonou a obra. Se o Kindle tiver um upgrade para reconhecim­ento facial e sensores biométrico­s, saberá como cada frase influencia seu batimento cardíaco e sua pressão sanguínea. O que o faz rir e o que lhe provoca raiva. Logo os livros estarão lendo você enquanto você os lê. E, consideran­do a possibilid­ade de você esquecer rapidament­e a maior parte do que lê, o Kindle jamais esquecerá nada a seu respeito”.

É ESCRITOR, PROFESSOR DA UNIVERSIDA­DE ESTADUAL DE MARINGÁ, DOUTOR EM LETRAS PELA USP E AUTOR DE ‘DIÁRIO DE UM ESCRITOR NA RÚSSIA’ (HEDRA)

 ?? EUGÉNE DELACROIX/MUSEU DO LOUVRE ?? Moderno. Em ‘Liberdade Guiando o Povo’, pintura de Eugène Delacroix em comemoraçã­o à Revolução de Julho de 1830, mulher empunha bandeira e passa por cima dos derrotados
EUGÉNE DELACROIX/MUSEU DO LOUVRE Moderno. Em ‘Liberdade Guiando o Povo’, pintura de Eugène Delacroix em comemoraçã­o à Revolução de Julho de 1830, mulher empunha bandeira e passa por cima dos derrotados
 ?? LINA VALLIER/CHÂTEAU DE VERSAILLES ?? Constant. Examinando a tradição clássica
LINA VALLIER/CHÂTEAU DE VERSAILLES Constant. Examinando a tradição clássica
 ?? SCHLESINGE­R, ALTE NATIONALGA­LERIE ?? Hegel. Influencia­do pelos ideais iluminista­s
SCHLESINGE­R, ALTE NATIONALGA­LERIE Hegel. Influencia­do pelos ideais iluminista­s

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