O Estado de S. Paulo

FÁBULA SOBRE O HORROR

Ao estilizar com precisão o real, Grumberg eleva a fábula a um nível ainda maior de realidade em ‘A Mercadoria Mais Preciosa’, uma surpresa

- Luiz Nazário

Quando comecei a ler o pequeno livro A Mercadoria Mais Preciosa, de Jean-Claude Grumberg, apresentad­o como “Uma fábula sobre o Holocausto”, pensei comigo mesmo: será mais uma tentativa de reduzir o horror desse evento a uma fantasia tragicômic­a palatável, como o fez Roberto Benigni no filme A Vida é Bela (1997), que abriu as portas para o novo tom agridoce da abordagem do Holocausto pelo cinema.

Miraculosa­mente, o cineasta judeu-romeno radicado na França, Radu Mihileanu, conseguiu criar uma fábula grotesca e verdadeira em O Trem da Vida (1998): em 1941, num schtelt da Europa Ocidental, a notícia trazida por Schlomo, o bobo da aldeia, de que os nazistas estão chegando para deportar os judeus, cria o pânico. Até que o próprio Schlomo tem a ideia de forjar um trem de deportação com os judeus interpreta­ndo todos os papéis: os alemães, os maquinista­s, os deportados. Antes da chegada dos nazistas, o falso trem parte rumo à Terra Prometida. Tudo segue como planejado, mas as encenações dos judeus ficam cada vez mais realistas, com os “nazistas” assumindo sua violência, os “deportados” tramando uma rebelião, os comunistas declarando guerra aos burgueses e imperialis­tas. A fábula retoma o sentido da verdadeira tragédia do Holocausto graças ao recurso final do deslocamen­to do sonho para a realidade.

Mas ao forçar a realidade histórica de um genocídio a seguir as leis de uma fantasia atemporal e etérea, o narrador corre sempre o risco de cair na pieguice revisionis­ta. Assim, em O Menino do Pijama Listrado (2006), de John Boyne, adaptado para o cinema por Mark Herman (2008), somos levados a nos horrorizar com a queda de um bom menino alemão no destino reservado aos judeus, como se a morte destes nas câmaras de gás não despertass­e mais nenhuma compaixão, sendo necessário agora colocar ali o filho de um carrasco da S.S. para tocar os corações endurecido­s.

Também em Um Homem Bom (2008), de Vicente Amorim, o professor alemão de literatura francesa John Halder, alheio à ditadura opressora de Hitler, ascende em sua carreira depois de escrever um romance sobre a eutanásia (!), chegando a assumir um cargo honorário nas S.S. e ver-se, subitament­e, comandando o terror num campo de concentraç­ão. A trama inverossím­il justifica o genocídio pela “bondade” do caráter dos carrascos...

Mais recentemen­te, o cineasta húngaro László Nemes tentou criar uma fábula sombria em O Filho de Saul (2015), mas, ao optar estilistic­amente pelo uso constante da câmera subjetiva em movimentos frenéticos, acabou sobrepondo à narrativa dos fatos históricos um artificial­ismo desnecessá­rio, que a fez soar falsa apesar da premissa macabra e realista.

Minha impressão inicial era a de que JeanClaude Grumberg cairia no mesmo erro formalista dessas fábulas revisionis­tas ao optar por criar personagen­s sem nome (“pobre lenhadora”, “pobre lenhador”, “mercadoria­zinha”, “o destilador”) vivendo numa floresta, ao lado de personagen­s com nomes (Dinah, Henri, Rose) vivendo em locais reais (Rue de Chabrol, Hauteville, Pithiviers, Drancy, Paris).

Outro arriscado formalismo do autor pareceu-me o abuso das anáforas (“não não não não”, “o objeto, o objeto”, “protesta e protesta”, “que fazer, que fazer”, “uma história verdadeira? Uma história verdadeira?”, etc.). Essa figura de linguagem costuma ser usada por escritores medíocres para disfarçar sua literatura menor com ares de uma prosa poética ao estilo da grande literatura.

Contudo, à medida que a narrativa avança, num ritmo cada vez mais acelerado e sinistro, o estilismo aparente cede ao realismo, com a fantasia da fábula servindo às verdades humanas mais profundas, arrancando o leitor de seu conformism­o, convidando-o a se jogar no abismo junto com seus personagen­s, que não conhecem qualquer limite.

A Mercadoria Mais Preciosa resulta num fábula terrível e maravilhos­a – no sentido original do termo, isto é, miraculosa. Jean-Claude Grumberg soube usar aqueles recursos formais suspeitos para criar uma narrativa complexa, que estiliza a História sem desfigurá-la, evocando suas próprias feridas familiares, jamais cicatrizad­as. Ele o faz magnificam­ente coma experiênci­a de quem cresceu sobreviven­do aos pogroms, à deportação e ao Holocausto, ao qual sucumbiram seus avós e seu pai.

Depois de exercer diversas profissões, como a de alfaiate e ator, Grumberg começou a escrever e se tornou um premiado autor teatral, autor de 36 peças, nas quais inseriu os dilemas da comunidade judaica francesa durante a Ocupação nazista e após o Holocausto, como na trilogia Dreyfus (1974), L’Atelier (1979) e Zone Libre (1990).

Mas o talento de Grumberg não se limitou ao teatro adulto, onde conquistou, entre outros, seis prêmios Molière e o Grand Prix du Théâtre (Grande Prêmio do Teatro) da Ac ad émi eF rançais e.Gr um berg também escreveu oito peças infantis, um seriado para a TV e sete roteiros para o cinema, com destaque para O Último Metrô (Le Dernier Métro, 1980), de François Truffaut; O Pequeno Apocalipse (La Petite Apocalypse, 1993), de Constantin Costa-Gravas; Fait d'hiver (1999), de Robert Enrico; Amém (Amen, 2002) e

O Corte (Le Couperet, 2005), de Gavras. Por

Amém, sobre o qual disse não ser “um filme histórico, mas sobre o mundo de hoje: um filme sobre a omissão de várias entidades”, Grumberg foi merecidame­nte premiado com o César de melhor roteiro em 2003.

A morte do pai, simples alfaiate romeno, num campo de concentraç­ão, marcou toda a obra do escritor. Sobre esse pai desconheci­do, Grumberg escreveu o “quebra-cabeça” literário Mon Père. Inventaire (Meu Pai. Inventário, 2003), reunindo tudo o que sabia ou acreditava saber sobre ele, numa tentativa tardia de reconstitu­ir a memória do pai que perdeu muito cedo. No vazio deixado pela ausência cresceu nele a revolta por um abandono imaginário: “Nunca soube para que servisse um pai”, escreveu o órfão inconforma­do.

A mercadoria mais preciosa também trata de amores desesperad­os; de uma escolha de Sofia em que o pai decide salvar um dos gêmeos da morte certa de ambos na câmara de gás; desse pai que sobrevive no campo de extermínio raspando os crânios dos cadáveres para recuperar cabeleiras que servirão para fabricar tecidos baratos; da orfandade mais desoladora­s oba fome, fugindo dos colaborado­res, sempre dispostos a entregar os judeus para os nazistas.

Co mouma história assim podes era presentada co mouma fábula? Esseéo milagre da literatura deGr um berg: ele consegue fazerdes se enredo macabro um hino à vida. E para evitar o revisionis­mo das “fábulas do Holocausto” ele afirma no epílogo que ninguém deve acreditar em sua história, que nada nela pode ser verdadeiro, que ela é uma mentira desde o início, que nada disso aconteceu, nem poderia jamais acontecer.

Ao negara realidade histórica que ele estilizou com precisão, G rum ber gel eva a fábula a um nível ainda maior de realidade, incorporan­do a negação do Holocausto na dimensão fabulosa, desconstru­indo o revisionis­mo pela paródia da negação da realidade tão horrenda que jamais poderia ter sido rea leque, no entanto, aconteceu, como prova o Memorial da Deportação dos Judeus da França, organizado por SergeKlars­feld em 1978, a partir dasl istas alfabética­s dos judeus franceses deportados equeGr um berg fez questão de citar, num apêndice esclareced­or, para os leitores “amantes de histórias verdadeira­s”. Tão verdadeira­s quanto o seu terrível e maravilhos­o conto de fadas.

É PROFESSOR DE TEORIA E HISTÓRIA DO CINEMA NA UFMG E AUTOR DE ‘O CINEMA ERRANTE’ (PERSPECTIV­A)

QUANTO PODE DURAR A MEMÓRIA? PARA MANTÊ-LA, LUTAR CONTRA O ESQUECIMEN­TO, JEAN-CLAUDE GRUMBERG FEZ A APOSTA JUSTA NO CONTO

EM CRÍTICA DO LIVRO PUBLICADA PELO JORNAL ‘LE MONDE’ Raphaëlle Leyris

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ELIOT BLONDET Grumberg. A morte do pai, simples alfaiate romeno, num campo de concentraç­ão, marcou toda a obra do escritor

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