O Estado de S. Paulo

VIENA CRIA UM NOVO ‘ORLANDO’

Versão para a ópera do livro de Virginia Woolf sobre jovem da era elizabetan­a que cruza os séculos é ousada, mas peca por seu panfletari­smo

- Joshua Barone / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZ­OU

O Orlando de Olga Neuwirth fez história mesmo antes de sua estreia mundial na Ópera de Viena, no domingo passado, 8: seria o primeiro trabalho de uma compositor­a a ser executado por essa famosa companhia. Mas por que parar aí? Com carta branca para quebrar os limites, Neuwirth deu o máximo. Sua diretora, Polly Graham, e a colaborado­ra do libreto, Catherine Filloux, são mulheres – assim como Rei Kawakubo, a titã da alta costura da Commes des Garçons, que desenhou os figurinos. Entre as estrelas está a artista queer Justin Vivian Bond, que trocou o Joe’s Pub de Manhattan por um dos maiores palcos da Europa.

A inspiração de Neuwirth é Orlando, de Virginia Woolf, uma biografia fictícia e bem engraçada que mistura os gêneros (nos dois sentidos). O romance termina no dia de sua publicação, em 1928, mas Neuwirth segue até o presente, contando em três horas séculos da vida de um poeta, um homem da Inglaterra elisabetan­a que da noite para o dia se torna mulher e nunca parece envelhecer.

Um escopo tão amplo assim pode ser demais para uma ópera. Então, ainda que haja muito a se comemorar com o marco da estreia de Orlando, também há muito a se lamentar: uma aparente falta de autoedição, uma integração deselegant­e entre música e texto, uma franqueza panfletári­a que transforma as cenas finais em mera ladainha sobre causas liberais.

É, no entanto, um triunfo da escrita orquestral. Conduzida por Matthias Pintscher, com pleno domínio sobre o caos organizado de Neuwirth, a trilha é uma vasta e irônica analogia ao romance de Woolf, uma jornada pelos séculos com referência­s tão fugazes que você raramente consegue identificá-las com total confiança. Uma sugestão da Sagração da Primavera de Stravinski vem e vai feito um chicote. Em entrevista­s e no programa da ópera, Neuwirth descreveu que seu objetivo era criar uma espécie de androginia sonora. Ela apaga a linha entre o que é acústico e digital, o que está no palco e fora dele. Os segundos violinos são afinados em um tom abaixo dos primeiros, o que provoca certo incômodo. O coro que canta de uma tribuna acima do lustre do auditório cria uma dissonânci­a cognitiva com aquele que canta, ao mesmo tempo, no palco. Como nas óperas anteriores de Neuwirth – entre elas, uma adaptação de Estrada Perdida, de David Lynch – a trilha exige uma substancia­l biblioteca de referência­s; a parte eletrônica e o design de som são assinados por Neuwirth, Markus Noisternig, Gilbert Nouno e Clément Cornuau. O saco de pancadas que aparece no palco na primeira cena é equipado com microfones e, quando o jovem Orlando bate nele com um bastão, os ruídos são incorporad­os à música.

Mas, apesar de toda a engenhosid­ade, Neuwirth trata a escrita vocal como uma reflexão tardia. Tem um pouco de humor – a soprano Constance Hauman, no papel de rainha Elizabeth, e outros dois personagen­s às vezes se apresentam com uma paródia da voz operística – mas muitos no elenco não recebem o suficiente para causar alguma impressão. Kate Lindsey, uma intensa meio-soprano, canta o jovem Orlando em um registro desconfort­avelmente baixo, que sobe depois de sua transforma­ção em mulher. Para um espetáculo sobre androginia, parece um equívoco.

Quando vemos Lindsey pela primeira vez, Orlando está de calções e é trazido ao palco pelo Narrador, papel da cantora italiana Anna Clementi, que atua como um duplo de Orlando, escrevendo sua história em tempo real, enquanto o texto da biografia é projetado sobre painéis ao fundo. (Os vídeos hiper-realistas são de Will Duke.)

A ópera fica bem próxima ao romance durante o primeiro ato. O jovem se torna o favorito da rainha Elizabeth; experiment­a um desgosto na Grande Geada de 1608; e escreve poesia, na esperança de compartilh­á-la com uma celebridad­e do meio, Nicholas Greene (o barítono Leigh Melrose, com balanços vocais que lembram Eddy em Estrada Perdida). Vigiando tudo isso está o Anjo da Guarda, Eric Jurenas, cuja voz contrateno­r suave e encorpada foi um destaque.

Orlando se torna embaixador em terras estrangeir­as, onde um dia acorda como mulher – de vestido verde e rosa e colar de flores – e passa a viver a vida efetivamen­te de segunda classe que vem junto com seu novo gênero. No final do primeiro ato, em um movimento que afasta a ópera do romance e dá início à sua militância gritante, ela fala dos abusos sexuais contra crianças na Grã-Bretanha da era vitoriana e promete reescrever a história das mulheres.

É uma promessa robusta para o segundo ato, e Neuwirth nunca chega a cumpri-la. Conhecemos Shelmerdin­e, o futuro marido de Orlando (Melrose, novamente), com quem compartilh­a os cabelos ondulados, os traços angulares e, por fim, o filho, interpreta­do por Bond. Então, o enredo acelera até o século 20, com uma montagem que mostra um mundo onde as espadas foram substituíd­as por bombas atômicas e as amarras de identidade foram derrubadas como o Muro de Berlim.

A ação se detém durante a 2.ª Guerra Mundial, quando Orlando fica sozinha no palco vazio, enquanto os nomes das vítimas do Holocausto são projetados sobre as cortinas; a trilha apresenta uma gravação de 1928 de um movimento do concerto para violino de Bach, tocado por Arnold Rosé e sua filha Alma, que morreram no campo de concentraç­ão de Birkenau, em 1944. Um alarde vai subindo lentamente entre a música rascante, e então o palco é tomado por uma explosão sônica – tão poderosa que sacode os assentos do teatro. À medida que a poeira vai baixando, por assim dizer, as telas no palco mostram a Ópera de Viena bombardead­a na guerra.

No entanto, não há tempo para lamentar: o tempo continua correndo para o presente, passando dos brilhantes e modernos anos 1960 ao final dos anos 80, quando uma editora diz a Orlando que “romper a barreira do gênero” seria desastroso para sua carreira de escritora. Por toda parte aparecem citações de letras de músicas pop, como Born

This Way, de Lady Gaga, e a divertida Coming, que encerra a adaptação cinematogr­áfica que Sally Potter fez para Orlando, em 1992.

Quando o filho de Orlando entra em cena, a política da ópera fica cada vez mais cáustica e até mesmo juvenil. Bond denuncia o patriarcad­o; Orlando se assusta com a ascensão do nacionalis­mo, enquanto a voz do presidente Donald Trump é distorcida até ficar quase irreconhec­ível. Esses momentos, que perdem de vista a história de Orlando e carregam toda a sutileza de cartazes de protestos, ficam cansativos à medida que as horas passam. Em seguida, o enredo chega ao dia da apresentaç­ão. No romance de Woolf, o presente é uma “revelação aterradora”. Mas, no domingo, era apenas um sinal de que a ópera estava terminando – finalmente.

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MICHAEL PÖHN/THE NEW YORK TIMES No palco. Kate Lindsey (E) interpreta o Orlando e Agneta Eichenholz vive Sasha na ópera de Olga Neuwirth
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Cores. Da esquerda para a direita, Justin Vivian Bond, Anna Clementi e Constance Hauman em cena de ‘Orlando’

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