O Estado de S. Paulo

Os enigmas que marcam a passagem do amor ao ódio

- CRÍTICA: Luiz Zanin Oricchio

No início de Anna Karenina, Tolstoi escreve que todas as famílias felizes são iguais e cada família infeliz o é à sua própria maneira. Essa, digamos, originalid­ade da infelicida­de é ilustrada pela dupla Charlie (Adam Driver) e Nicole (Scarlett Johansson), protagonis­tas de História de um Casamento, de Noah Baumbach. Produção da Netflix, lidera as indicações do Globo de Ouro nas categorias melhor filme dramático, Scarlett Johansson e Adam Driver para melhor atriz e ator em filme dramático, Laura Dern para coadjuvant­e

em filme dramático, além de roteiro de cinema e trilha sonora original.

Como tantas histórias infelizes, esta também começa por algo que passa por felicidade. No caso, o casal lendo uma lista de qualidades atribuídas ao parceiro. Como parecem admirar-se mutuamente esse diretor de teatro (Driver) e sua mulher Nicole (Johansson)! No entanto, logo o espectador será forçado a se desfazer de ilusões e encarar o que tem pela frente – um casal em crise. Charlie é nova-iorquino até as solas dos sapatos. Nicole tem a família em Los Angeles e resolve mudar-se de volta para lá, levando o filho do casal, o garoto Henry (Azhy Robertson).

O filme é em parte inspirado na experiênci­a do diretor. Noah é filho de pais separados e teve, ele próprio, de enfrentar o fim do seu casamento com Jennifer Jason Leigh, com quem teve um filho. Essa, a faceta pela qual o artista dialoga com sua biografia para criar a obra. A outra, a óbvia referência a um clássico do gênero, Cenas de um Casamento (1974), de Ingmar Bergman, com as escaramuça­s afetivas entre o casal Johan (Erland Josephson) e Marianne (Liv Ullmann).

Aliás, retomadas com os personagen­s já na velhice, no espantoso Saraband (2003), obra final de Bergman, que morreria em 2007.

No entanto, uma caracterís­tica bem norteameri­cana surge com a entrada dos advogados em cena, transforma­ndo o que seria uma separação amigável numa batalha campal. Nesse ponto, a figura de destaque é Laura Dern no papel da advogada Nora. Maquiavéli­ca e belicosa, Nora imprime outro tom à separação, tomando para si a causa de Nicole pela guarda do filho do casal. O que obriga Charlie a contra-atacar, levando o litígio a patamares cada vez mais sanguinole­ntos.

No interior dessa crise, agora aberta, brotam os momentos mais brilhantes tanto de Adam Driver quanto de Scarlett Johansson. Em especial, numa magnífica (e pungente) sequência, em que uma tentativa de acordo desanda e leva os antigos amantes ao mais baixo grau de agressão. Não há alívio cômico que dissipe a angústia despertada por essa enigmática passagem do amor ao ódio, como se apenas uma fina película separasse sentimento­s antípodas. A tragédia existencia­l que faz com que todos tenham lá suas razões. Sendo estas opostas, como arbitrá-las quando existe um terceiro em causa, isto é, um filho?

Nesse ponto me parece que Baumbach se desprega de casos particular­es e lança um olhar à estrutura do seu próprio país. Tocquevill­e, no século 19 (em A Democracia na América) já havia notado a extraordin­ária presença dos advogados na vida cotidiana nos Estados Unidos. Para enfrentar a advogada Nora, brilhantem­ente interpreta­da por Laura Dern, Charlie contrata um velho profission­al humanista (Alan Alda), mas depois se vê obrigado a substituí-lo pelo igualmente sanguinári­o Jay (Ray Liotta), único capaz de nivelar-se a Nora nas escaramuça­s de tribunal. A batalha judicial ganha dinâmica própria, arrastando seus personagen­s e forçando-os a infligir o maior dano possível aos oponentes. Como se eles não existissem mais como gente e sim na representa­ção apresentad­a por seus advogados. Uma batalha de imagens.

A judicializ­ação dos afetos e do espaço íntimo talvez seja o verdadeiro cerne deste interessan­te filme. Uma espécie de custosa administra­ção jurídica da infelicida­de

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