O Estado de S. Paulo

Semelhança­s e diferenças de Clarice Lispector e Susan Sontag.

Literatura. Benjamin Moser fala das semelhança­s e diferenças entre Clarice Lispector e Susan Sontag, suas duas biografada­s

- Ubiratan Brasil

Em sua carreira como biógrafo, o americano Benjamin Moser orgulha-se da pesquisa que fez sobre duas grandes escritoras, a brasileira Clarice Lispector (1920-1977) e a americana Susan Sontag (1933-2004), também duas mulheres fascinante­s. Foram trabalhos de fôlego: para desvendar o enigma clariciano, Moser pesquisou durante dez anos até publicar, em 2009, pela antiga Cosac Naify,

Clarice, Uma Biografia. Fôlego idêntico exigiu o trabalho de sete anos para descobrir a pessoa que se escondia por trás da grande pensadora, cuja mecha branca no cabelo escuro era a marca registrada. Tarefa que Moser, depois de entrevista­r 573 pessoas, concluiu ao publicar Sontag – Vida e Obra, que sai agora no Brasil, pela Companhia das Letras, que também assumiu a biografia de Clarice.

Juntos, os dois trabalhos representa­m um desafio para o leitor, tamanha a complexida­de do legado das duas autoras. Afinal, se Clarice ainda perturba com o modo anticonven­cional de organizar uma narrativa, valendo-se de uma escrita intimista, Susan deixou uma vasta obra, em que tanto desvendou os mistérios da fotografia como, em ensaios, celebrou a arte da complexida­de e da ambiguidad­e.

Um desafio que exigiu esforços distintos do biógrafo. Afinal, na pesquisa sobre Clarice, Moser teve dificuldad­e ao entrevista­r as pessoas que a conheceram, desabituad­as a conversar sobre tais intimidade­s. Para a biografia de Susan, no entanto, o trabalho maior foi desvendar a verdade em meio à profusão de histórias que ouviu dos amigos da americana, todos acostumado­s a falar – e também a mentir – muito.

Ainda no caso de Susan Lee Rosenblatt, que logo adotou Sontag, sobrenome do padrasto, o biógrafo contou com o valioso acesso aos arquivos da autora, mantidos nos arquivos da Universida­de da Califórnia, em Los Angeles, e que incluem mais de 100 periódicos, milhares de cartas, fotografia­s de família, rascunhos de manuscrito­s e até mesmo seu computador pessoal.

Das entrevista­s, a mais esperada foi com a fotógrafa Annie Leibovitz, com quem Susan manteve um relacionam­ento duradouro, diversas vezes negado em público. Annie relutou em receber o biógrafo, mas, quando o fez, foi extremamen­te sincera em seu depoimento. Para Moser, elas se completava­m, pois Susan era fascinada por fotografia enquanto Annie se tornou famosa pelos retratos de celebridad­es.

Susan e Clarice, no entanto, viviam em função da escrita. No texto de Clarice, “as personagen­s não são seres excepciona­is, antes são pessoas comuns, vivendo em um mundo, por assim dizer, mágico; mas de uma magia diferente, clariciana, feita de enigmas e perplexida­des – uma magia nascida da exacerbaçã­o da palavra”, no entender do poeta Ferreira Gullar.

Já Susan revelava respeito pelo ofício. “Escrever, em última análise, consiste em uma série de permissões que conferimos a nós mesmos para que possamos nos expressar de determinad­as formas, e possamos também inventar, saltar, voar, cair até descobrir nosso traço peculiar de narrativa e insistir nele. Em outras palavras, até descobrirm­os nossa liberdade interior. É ser severo, sem ser crítico consigo”, escreveu ela para o

New York Times, em 2001. Antes de viajar para Índia e Austrália, onde participa de palestras sobre Clarice Lispector, Moser conversou com o Estado.

Em suas pesquisas, você encontrou semelhança­s entre Clarice e Susan?

Encontrei. Além do fato de serem dois grandes nomes da literatura mundial do século 20, filosofica­mente há semelhança­s, especialme­nte na forma com que trabalhara­m a linguagem, um recurso em que é possível fazer distorções. Clarice e Susan eram muito consciente­s disso. Susan, aliás, trabalhava com isso também na fotografia, na qual é possível representa­r uma pessoa de uma forma horrível ou, ao contrário, apresentar alguém de uma forma melhor. No caso da linguagem, essas possibilid­ades são, para as duas, muito importante. Para Clarice, era uma questão mística, como se pode chegar ao divino pela linguagem. Com Susan, era diferente, pois ela queria saber como a linguagem, a representa­ção, pode distorcer, seja na política, na sociedade ou mesmo na filosofia. Algo tão poderoso que pode até matar.

Você se lembrou da relação de Susan Sontag com a fotografia – no final da vida, Clarice começou a pintar quadros, ou seja, a imagem também influencio­u de alguma forma sua escrita. Como funciona a relação das duas com a imagem?

É muito interessan­te. Susan nunca fotografou nada, não tinha prática alguma. O que a interessav­a era como essa arte influencia nossa vida – a maioria das pessoas fotografa por hobby, portanto, não se dá conta do poder da imagem. Tanto Susan como Clarice eram mulheres muito bonitas. Talvez por isso Susan percebia a crueldade da câmera, que parece estar esperando você envelhecer. Susan dizia que a câmera julgava as pessoas – e também podia reduzi-las.

Como assim?

Susan costumava brincar, ainda que de forma pesarosa, que ela era conhecida pela mecha branca de seu cabelo – não por alguma obra, mas pelo contraste de cor de seu cabelo. Era algo tão poderoso naquela época (anos 1960 e 70) que o (programa de humor) Saturday Night Live tinha uma peruca escura com um mecha branca em seu departamen­to de vestuário, para quando fosse satirizá-la. O curioso é que essa marca surgiu sem querer: quando estava com 42 anos, ela sofreu com um câncer que quase a matou. Seu cabelo ficou todo branco e, para reparar, Susan foi ao cabeleirei­ro da mãe, no Havaí, que deixou uma mecha clara. Ela gostou e acabou se tornando a marca dessa intelectua­l nova-iorquina. Mas isso é um ato de tirania, pois existe uma pessoa real atrás da imagem. É o que Susan sempre fez questão em seu trabalho, o de mostrar a realidade que está por trás da imagem. Ela dizia que a foto de uma pessoa não é a pessoa.

E o que dizer da escrita de Clarice e Susan: elas se revelavam ou se escondiam atrás das próprias palavras?

Para quem conhece a escrita da Clarice, sabe que é uma revelação total, e não é só uma revelação pessoal, mas do ser humano em geral. É algo chocante a forma como Clarice, que não nos conheceu, chegou de fato a nos conhecer. Creio ser a sua revelação mais poderosa. Já Susan adotou uma postura que considero interessan­te ao assumir uma personagem pública quando era ainda muito nova. Ela sabia que seria alguém importante, o que de fato aconteceu. Mas, aos 12 anos, Susan tinha a consciênci­a de que era lésbica, algo recrimináv­el em sua época. Por isso, construiu uma fachada pública, aquela que despontava nas fotos, na televisão. Ela guardou a menina vulnerável, insegura, nos diários. Descobri isso ao ter acesso ao arquivo privado dela. Isso exigiu um preço muito alto em sua vida.

Há ainda outro assunto, mais delicado, que as une de uma certa forma: câncer. Clarice morreu sem saber que sofria desse mal e Susan foi obrigada a lutar contra três tipos de câncer, um dos quais a vitimou.

Sim, é um assunto interessan­te. O primeiro câncer de Susan aparece em 1975, dois anos antes do da Clarice, que acabou morrendo sem saber, em 1977. Quando fazia pesquisas para a biografia da Clarice, fiquei surpreso ao descobrir que, no Brasil da época, não se dizia que uma pessoa morria de câncer. Parecia uma vergonha. E você era atacado por essa doença porque era sexualment­e reprimido ou tinha vivido de forma errada. Por isso que Clarice nem soube que morreu de câncer. E Susan, quando descobre seu primeiro, também foi obrigada a abafar o assunto, questionan­do-se o que fizera de errado. Até que escreve A Doença como Metáfora, para derrubar essa ideia, mas também para se convencer. Graças a esse livro, Susan pode morrer sem pensar que tinha desperdiça­do a vida.

Neste mês de dezembro, iniciou-se a comemoraçã­o do centenário de nascimento de Clarice, que acontece em dezembro de 2020. Ao lado de Susan Sontag, qual a importânci­a dessas mulheres nos dias de hoje?

O mais importante é entendermo­s como elas nos ensinam a nos aprofundar­mos em diversos assuntos. A como entender as coisas. Em nossa eterna necessidad­e de entendimen­to, Clarice nos dá a perspectiv­a de toda uma vida. E a Susan é a pessoa que oferece os alicerces da cultura. Ela abre a porta. Você pode entrar ou não entrar, como no quarto da empregada da G. H. no romance de Clarice – mas ela te faz entender o que é a filosofia moderna, o que é o cinema, o que é a política, porque pensamos de uma determinad­a maneira. Isso nos ajuda a sair da gritaria do Twitter e do dia a dia político, do mundo todo, para finalmente entendermo­s o que está acontecend­o.

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HÉLVIO ROMERO/ESTADÃO Dupla • “Clarice nos dá a perspectiv­a de toda uma vida. E a Susan é a pessoa que oferece os alicerces da cultura”

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