O Estado de S. Paulo

Na terra de Italo

RN festeja campeão mundial de surfe, Italo Ferreira.

- Rodrigo Ferreira ESPECIAL PARA O ESTADO BAÍA FORMOSA / RN

A madrugada da sexta-feira 20 de dezembro foi de muitos festejos para a população da pacata cidade de Baía Formosa, no interior do Rio Grande do Norte. O município, distante 96 km da capital Natal, pôde comemorar a maior de suas glórias no esporte nacional. O surfista Italo Ferreira, de 25 anos, nascido e criado na região, venceu o Circuito Mundial Masculino de Surfe (WCT, na sigla em inglês) pela primeira vez após ganhar do compatriot­a Gabriel Medina em Pipeline, na última e decisiva etapa da disputa.

O título de Italo na principal categoria do surfe mundial não só foi o primeiro do Rio Grande do Norte na história como também o primeiro da região Nordeste do País. Antes dele, Gabriel Medina, em 2014 e 2018, e Adriano de Souza, o Mineirinho, em 2015, conseguira­m trazer o troféu ao Brasil. Mas eles são representa­ntes do Estado de São Paulo.

Mas, afinal, quem é Italo Ferreira? Por trás dos cabelos descolorid­os e da barba por fazer do campeão mundial existe uma grande história de vida. E, como costuma ocorrer com a maioria dos atletas brasileiro­s, ele começou de baixo, sem contar sequer com o equipament­o essencial para surfar, ou seja, a prancha. Isso, no entanto, nunca foi empecilho para que pudesse pegar suas primeiras ondas no mar potiguar.

‘Prancha de isopor’. Filho de Luiz Ferreira de Souza e Katiana Batista da Costa, Italo encontrou, aos 8 anos, em uma das principais ferramenta­s de trabalho do seu pai, o objeto que lhe colocaria de uma vez por todas no caminho do surfe. Vendedor de peixes, Luizinho, como é conhecido o pai do atleta, saía todos os dias bem cedo para a praia da Pipa, em Tibau do Sul, a cerca de 61 km de Baía Formosa. Com ele, levava uma caixa de isopor lotada de peixes e também a sua companhia fiel para a jornada de trabalho: o pequeno Italo.

“Saíamos todos os dias em direção a Pipa para vender os peixes. Era a forma que eu tinha de sustentar a família. Apesar

de ser um trabalho humilde, nunca passamos necessidad­es. Eu levava ele comigo para ter companhia, mas, assim que a gente chegava no ponto, a primeira coisa que ele fazia era ir para o mar. Como não tinha prancha, tirava a tampa do meu isopor e começava a pegar ondas. Foi como surgiu o interesse pelo surfe”, recordou Luiz ao Estado, horas depois de ver, pela TV, o filho se tornar campeão mundial.

Na tampa do isopor, Italo fazia as manobras que lhe cabia e eram possíveis. Como todo iniciante, buscava primeiro o equilíbrio sobre o objeto para depois partir para etapas mais avançadas. Esse processo durou quase um ano e rendeu ao pai várias tampas quebradas, o que, diz ele, não o deixava chateado. “Ele só queria se divertir, não dava para reclamar. Era a única coisa que dava para ele fazer naquele momento e eu reconhecia isso”, justifica.

Com o isopor, Italo treinou tanto que, em dado momento, o objeto não mais lhe serviu. Estava pequeno e quase que inutilizáv­el para seguir aperfeiçoa­ndo suas técnicas. Sem dinheiro para comprar uma prancha, a família contou com a ajuda de terceiros, que doaram uma prancha velha e sem bico ao menino, presente capaz de protagoniz­ar um sorriso largo no rosto dele. “Ele só reclamava que a prancha era pesada, mas era o que tinha, então ia para o mar assim mesmo”, rememora Luizinho, nostálgico.

Cerca de três anos depois, aos 11, Italo ganhou sua primeira prancha nova. E foi da família. Até hoje, o pai lembra: “Gastei R$ 120, uma fortuna na época, mas foi o melhor presente que poderia ter dado”. Com um equipament­o que lhe oferecia a qualidade mínima necessária para praticar o surfe, Ferreira passou a aperfeiçoa­r manobras e, de uma vez por todas, entrou para a modalidade de corpo e alma, disposto a fazer dela a sua profissão.

Coisa de vagabundo. Assim como diversas crianças e adolescent­es que decidem enveredar pelos caminhos do surfe no Brasil, Italo sofreu, no início, com o preconceit­o enraizado em parte da população. Alheio aos estudos, ele gostava de ficar no mar o dia inteiro e isso, inevitavel­mente, gerava comentário­s tendencios­os de algumas pessoas. O pai lembra com tristeza do que ouvia.

“Infelizmen­te, a gente precisou ouvir muita coisa pelo fato de ele sempre ter se dedicado ao surfe. Italo não era muito fã dos estudos, tanto que só terminou o primeiro grau. Algumas pessoas viam ele se dedicando somente ao esporte e faziam comentário­s maldosos, dizendo que o surfe era coisa de vagabundo e que ele iria se perder nesse meio. Ficávamos tristes com isso, mas procurávam­os não nos abalar.”

Um dos comentário­s mais recorrente­s que eram dirigidos aos familiares do futuro campeão se baseavam no possível uso de drogas. “A gente ouvia que ele iria se envolver com coisas erradas, mas hoje me orgulho muito de dizer que meu filho não gosta nem de beber, muito menos de fumar. Nunca fumou na vida. Sempre foi um rapaz centrado, que sabia que para ser surfista precisava não se envolver em coisas erradas, e assim tem sido até hoje”, orgulha-se Luizinho.

Além dos comentário­s Italo e sua família também sentiram de perto o desprezo do poder público com os atletas amadores. Por diversas vezes precisaram arrecadar recursos com os próprios parentes para que ele pudesse ter melhores condições de treinament­o. Em nenhum momento os governos municipal e estadual ofereceram apoio financeiro ao atleta.

“Para ser sincero, a gente nem chegou a procurar. Já sabíamos das dificuldad­es que era pra conseguir, então quando ele precisava de alguma coisa a gente juntava a família e tentava arrecadar. Cada um dava R$ 5, R$ 10 e assim fazíamos para comprar o necessário. Mesmo quando ele começou a vencer torneios, o poder público jamais chegou para dar qualquer incentivo. É uma realidade triste do Brasil”, lamenta o pai do campeão.

ORIGENS

Luiz Ferreira de Souza

PAI DE ITALO FERREIRA ‘Como ele não tinha prancha, tirava a tampa do isopor e começava a pegar ondas. Foi como surgiu o interesse pelo surfe’

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VITORINO JUNIOR/PHOTOPRESS
 ?? VITORINO JUNIOR/PHOTOPRESS–23/12/2019 ?? Herói. Italo Ferreira voltou consagrado ao Rio Grande do Norte; ele aprendeu a surfar em uma tampa de isopor e desde pequeno já mostrava grande talento
VITORINO JUNIOR/PHOTOPRESS–23/12/2019 Herói. Italo Ferreira voltou consagrado ao Rio Grande do Norte; ele aprendeu a surfar em uma tampa de isopor e desde pequeno já mostrava grande talento
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FOTOS RODRIGO FERREIRA/ESTADÃO–20/12/2019 Torcida especial. Família de Italo dá apoio incondicio­nal
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Primeiras ondas. Italo surfava nas praias de Baía Formosa

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