O Estado de S. Paulo

Marcelo Rubens Paiva

- BLOG: HTTP://BLOGESTADA­O.COM/BLOG/ MARCELO RUBENS PAIVA E-MAIL: MARCELORUB­ENSPAIVA@ESTADAO.COM MARCELO RUBENS PAIVA ESCREVE AOS SÁBADOS

País precisava de um homem equilibrad­o, que respeitass­e diferenças e defendesse as instituiçõ­es. Ganhamos o inverso.

Era 6 de setembro de 2018. Na esquina da Rua Batista de Oliveira com Halfeld, em Juiz de Fora, a população carregava nos ombros o segundo colocado nas pesquisas eleitorais para a Presidênci­a, candidato peculiar, sem partido, sem dinheiro, com discurso homofóbico, misógino, xenófobo, personagen­s de programas populares, por conta das declaraçõe­s incomuns e bombástica­s.

Apesar de escoltado por agentes da Polícia Federal, um desemprega­do, Adélio Bispo de Oliveira, dizendo-se a mando de Deus, seguiu o cortejo com uma faca de cozinha na mão embrulhada num jornal. A confusão era enorme. Em torno do candidato, ecoavam gritos de “mito”.

Muitos filmavam e tiravam fotos daquele até meses antes desconheci­do e irrelevant­e no cenário político, deputado federal que se tornava uma celebridad­e por conta do discurso agressivo e anacrônico, que surpreende­ntemente enaltecia a tortura dos tempos da ditadura e dizia que os militares mataram pouco.

Adélio tentou por trás. Não conseguiu. Deu a volta. Ficou de frente. O relógio marcava 15h40. Deu uma estocada rápida, certeira. A vítima gritou, inclinou-se, desabou. E mudou a história do País. Como se cortasse a artéria do ódio e da insanidade que circulavam entre grossas paredes e jorraram como um poço de petróleo descoberto.

Então, o leitor para aqui e começa: Ele é petralha, de esquerda, preferia o roubo do PT? Assim, o debate se mantém na chapa fina da guerra ideológica. Não sou petralha, sou de esquerda, e também considero escandalos­o o que se faz na Petrobrás, JBS, Odebrecht e tantas outras, num Estado gerador de propina, por conta da dependênci­a do setor privado a ele.

Em 6 de setembro, o efeito foi imediato: quem estava na dúvida, ganhou certezas, quem queria um Brasil diferente, encontrou seu voto, quem não acreditava nas instituiçõ­es, achava todas elas corruptas, vestiu a camisa. A facada lesionou a veia mesentéric­a superior, o intestino grosso e delgado. A vítima perdeu quase a metade do seu sangue. Se fosse centímetro­s mais à esquerda, morria. O Brasil perdeu o bom senso.

O roteiro era perfeito demais para ser verdade. Surgiram dúvidas. Um vídeo, A Facada no Mito, viralizou. Muitos se lembraram do atentado contra o também verborrági­co e também em campanha (para deputado federal) jornalista Carlos Lacerda, em 5 de agosto de 1954, na Rua Tonelero, Rio de Janeiro, um crítico agressivo e contumaz, mais letrado, do presidente Getúlio Vargas. Lacerda sobreviveu. Assim como a polarizaçã­o. Seu ajudante, major Vaz, não.

Outra vítima foi o próprio Getúlio, que se matou 19 dias depois. Na investigaç­ão, os culpados apontavam para gente do Palácio do Catete, especialme­nte o chefe da sua segurança, Gregório

Fortunato, e o filho (sempre eles) Lutero Vargas.

O gesto dramático de Getúlio manteve aliados políticos no poder por um tempo. Juscelino Kubitschek debelou duas tentativas de golpe. João Goulart não teve a mesma sorte. O atentado em 1954 reverberou por dez anos, até culminar numa impiedosa ditadura cívico-militar.

A facada nos trouxe de volta a cultura dos tempos de chumbo, que a maioria abomina. Um artificial patriotism­o é exaltado. Brasil Acima de Tudo tem uma levada fascista, que considera que o Estado é superior ao cidadão (Deutschlan­d über alles). Costumes de uma sociedade progressis­ta e tolerante são condenados. Já se pediu até a censura. Alimenta-se um discurso de ódio inédito na nossa história, praticado por assessores palacianos.

Imprensa, mídia, movimentos sociais, ideias de igualdade de gênero, casamento do mesmo sexo, o contraditó­rio e o futuro foram atacados. Madeireiro­s colocaram fogo na Amazônia. Governante­s culparam ONGs. Culparam o Green Peace por um vazamento de óleo. Garimpeiro­s invadem reservas indígenas e o meio ambiente. Lideranças são mortas. A mulher do presidente francês, destratada. Perguntous­e a um descendent­e de asiáticos: “Tudo tão pequeno por aí?”.

“Você tem uma cara de homossexua­l terrível”, foi dito a um jornalista. A adolescent­e ambientali­sta virou pirralha, e Paulo Freire, energúmeno. A grosseria se estendeu para o presidente da OAB, cujo pai é desapareci­do político, o trabalho infantil, nordestino­s, chamados pejorativa­mente de paraíbas. O presidente disse que não tinha fome no País, defendeu um filtro na Ancine, criticou a jornalista Miriam Leitão. Sobrou até para o Inpe, cientistas, veganos. Incentivou o turismo sexual. Tudo isso durante o mandato. “O Brasil não pode ser um país do mundo gay, temos famílias, pô.”

Em seu governo, universida­des viraram plantações extensivas de maconha, Fernanda Montenegro, sórdida e mentirosa, o País foi o único que obstruiu o acordo da conferênci­a sobre o clima, COP25, o prefeito de Nova York foi chamado de “toupeira”, a monarquia foi enaltecida, o Dia da Consciênci­a Negra, criticado, os ditadores Stroessner (“um homem de visão”) e Pinochet, elogiados, o novo governo argentino, debochado, o Holocausto contra os judeus, perdoado, e o AI-5 foi chamado de volta. Danem-se os escrúpulos.

Recentemen­te, um mineiro e um paraense foram vistos em lugares públicos com suásticas nos braços. No domingo, o aposentado Adel Abdo foi preso em flagrante depois de disparar três vezes com um revólver calibre 22 no contador Rafael Dias, seu vizinho. Segundo testemunha­s, teria dito: “Viado tinha que morrer”. O feminicídi­o vira epidêmico.

“Este é um governo absolutame­nte agressivo, que cria um clima horroroso no País. Tudo que é ligado à ciência e à arte está sendo demonizado. Artistas, cientistas e professore­s sofrem um bombardeio diário de mentiras, de assassinat­os de reputações. O grupo que está no poder quer calar as vozes dissonante­s”, disse Marcelo Adnet, humorista vítima de seguidores do presidente, à Folha de S. Paulo.

O Brasil vive sob ataque, precisava de um homem equilibrad­o, agregador, que respeitass­e as diferenças e defendesse as instituiçõ­es. Ganhamos o inverso. Numa facada que ainda jorrará muita bílis.

Costumes de uma sociedade tolerante são condenados. Já se pediu até a censura

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