O Estado de S. Paulo

10 ANOS EM RETROSPECT­IVA

- E-MAIL: fernando@reinach.com É BIÓLOGO

Homem é animal recoberto por uma casca de civilidade, que começa a rachar.

Ohomem não passa de um animal recoberto por uma casca de civilidade. Nos últimos dez anos, me parece que essa casca começou a rachar. Pelas trincas, o passado está invadindo o presente e nos transforma­ndo no que sempre fomos. Por baixo da casca, somos um símio agressivo, temeroso dos fenômenos naturais e focado unicamente no futuro próximo.

Comer e reproduzir foram as únicas atividades que garantiram nossa existência por milhões de anos. Recentemen­te, há menos de um milhão de anos, o desenvolvi­mento do cérebro e da mente que ele produz fez com que descobríss­emos nossa mortalidad­e, algo novo no reino animal. A descoberta adicionou o medo de morrer à fome e ao desejo sexual e talvez seja o motivo para criarmos o que chamo de casca civilizató­ria.

Criar e aperfeiçoa­r a casca vem do fato de sermos também o único ser com dois modos de transmitir informaçõe­s entre gerações. Animais têm só a capacidade de transmitir sua informação genética por meio de espermatoz­oides e óvulos. Para eles, o progresso depende do lento processo da seleção natural. O que aprendem durante a vida se perde com a morte, pois só os genes sobrevivem na próxima geração.

Alguns animais são capazes de aprender com os pais: pássaros aprendem a cantar e carnívoros, a caçar. Mas isso não chega aos pés do que aprendemos na infância, lendo, vendo aulas, fotos e filmes. Nossos filhotes, além de receberem nossos genes, passam anos absorvendo parte da enorme quantidade de informação que acumulamos em milhares de anos. É por esse processo de aquisição de conhecimen­to que cada um de nós é recoberto por sua própria casca e nossa espécie leva adiante o que chamamos de civilizaçã­o.

Os benefícios da casca civilizató­ria são enormes e cresceram ao longo dos séculos. No início, os aprendizad­os eram estocados na memória de uma geração e repassada à próxima nas conversas ao pé do fogo. Como lascar a pedra para fazer uma lança, cercar a presa, construir um abrigo, voltar ao local onde frutas podem ser colhidas.

Mais tarde, foram as informaçõe­s sobre como cultivar plantas, domesticar animais e praticar o comércio. Com o advento da escrita, a quantidade de informação que pôde ser acumulada para consulta futura aumentou exponencia­lmente e ainda não parou de aumentar, passando pelas biblioteca­s e chegando à memória dos computador­es. Fenômenos naturais que nos apavoravam começaram a ser compreendi­dos e, em vez de rezar por chuva, irrigamos lavouras. Roupas e outros utensílios permitiram que nos espalhásse­mos pelo planeta. Leis e acordos sociais contiveram a violência do individual­ismo e permitiram que colaboráss­emos. Surgiram as primeiras civilizaçõ­es.

A preservaçã­o da casca e seu desenvolvi­mento nortearam a humanidade nos últimos séculos. O ensino passou a ser obrigatóri­o e se espalhou pelos países e classes sociais. O aperfeiçoa­mento das regras de convivênci­a, formas de governança das nações e mecanismos para garantir a paz se tornaram metas da humanidade, mesmo quando abandonada­s temporaria­mente. O conhecimen­to científico se tornou indispensá­vel, pois, aos poucos, se transformo­u em tecnologia – da eletricida­de às ondas eletromagn­éticas, passando pela metalurgia, máquina a vapor, medicina, carro, bomba atômica e internet.

Grande parte da humanidade lamenta o fato de muitas pessoas não terem a possibilid­ade de desenvolve­r sua casca individual e inveja países em que isso ocorre. No Brasil era assim. Nos últimos dez anos, em muitos locais do planeta, mas principalm­ente no Brasil, me parece que essa casca está rachando. Políticos não só se vangloriam de não serem educados, como percebem que vivem um enorme conflito de interesse: se incentivar­em a educação, a ciência e a cultura, põem em risco os votos que conquistar­am com discursos populistas e simples mentiras.

Corrupção e mecanismos para defender sua manutenção e impunidade seriam insustentá­veis se a educação tivesse fortalecid­o a casca da população. Rachaduras na casca civilizató­ria tornaram aceitáveis a difusão de mentiras, a agressivid­ade nas redes sociais, a religiosid­ade dogmática, o desprezo pela ciência (terraplani­smo e negacionis­mo climático) e pelo planeta onde vivemos. A medicina vai sendo solapada (movimento antivacina e homeopatia) e as instituiçõ­es de ensino e pesquisa são aos poucos destruídas.

Combinadas, essas mudanças permitem surgir por baixo da casca nossa natureza animal: agressiva, temerosa de deuses imaginário­s, suscetível a líderes fanáticos, propensa à violência irracional e preocupada unicamente com o curto prazo. São mudanças difíceis de reverter, pois têm a seu favor a natureza selvagem do animal que ainda somos. Só espero que meu pessimismo passe com o ano novo.

Mudanças são difíceis de reverter, pois têm a seu favor a natureza do animal que somos

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