O Estado de S. Paulo

A desinforma­ção e o pluralismo

- NICOLAU DA ROCHA CAVALCANTI ADVOGADO E JORNALISTA

Omundo anglosaxão sempre foi mais rígido com a mentira que o mundo latino. O presidente americano Bill Clinton que o diga. Por pouco não foi removido do cargo, num processo de impeachmen­t encerrado em 1999, sob a acusação de não ter dito a verdade num depoimento e de ter dificultad­o que outros dissessem a verdade. Hoje a questão da veracidade tem contornos muito mais complexos que duas décadas atrás. No mundo inteiro, seja qual for o grau de rigidez do país, observa-se o fenômeno da desinforma­ção. Há uma contínua produção e difusão de mensagens distorcida­s e equivocada­s, a poluir o ambiente social e o debate público.

Ela não causa apenas danos informativ­os. A desinforma­ção causa confusão e desconfian­ça, pondo em risco a existência do próprio espaço de diálogo. Não é apenas o debate que fica empobrecid­o pela má qualidade das mensagens em circulação. Num ambiente contaminad­o por fake news e, portanto, marcado pela desconfian­ça, verifica-se menor tolerância com as diferenças. Há uma redução do âmbito do pluralismo, com a propensão a desqualifi­car tudo o que contraria a própria visão de mundo.

Mal se começa a ler um artigo e, seja em razão do tom, de um termo específico ou do exemplo mencionado, surge impetuosa a sentença sobre o texto: tendencios­o, distorcido, mentiroso. E isso pode ocorrer com a notícia que se lê, a mensagem que se recebe pelo telefone ou a conversa no trabalho. Esse mecanismo de defesa, acionado por gatilhos mentais e afetivos, sempre está presente na comunicaçã­o humana. Mas o cenário de desconfian­ça potenciali­za sua ocorrência, estreitand­o a abertura mental ao desconheci­do e ao diferente.

A redução do espaço do pluralismo produz efeitos desastroso­s. Em primeiro lugar, aquilo que, em tese, seria uma proteção pode nos deixar mais vulnerávei­s à manipulaçã­o. E a razão é simples: os difusores da desinforma­ção valem-se de nossos bloqueios mentais para suas manobras comunicati­vas. Para desautoriz­ar uma mensagem, em vez de refutar os argumentos ou informaçõe­s nela presentes, pode ser mais eficaz (e rápido) simplesmen­te desqualifi­cá-la com um carimbo simplista. Alguns casos frequentes: fundamenta­lismo, fascismo, comunismo, marxismo cultural, ideologia de gênero, ecologismo, leniência com a impunidade. É preciso ter cuidado. Uma verdade pode ser equivocada­mente desprezada pelo simples fato de ter sido tachada negativame­nte.

Além do estreitame­nto de visão – deixamos de ver coisas evidentes, que estão à nossa frente, por mera aversão prima facie –, a redução do espaço do pluralismo afronta a ideia de sociedade.

Cada um é livre para conviver com quem quiser. Mas ao limitar a convivênci­a, por exemplo, a pessoas que pensam e votam da mesma forma, há um juízo tácito de que o diferente não merece ser escutado e pode ser escanteado.

Tal exclusão tem consequênc­ias sobre o tecido social, que fica esgarçado pela falta de diálogo e de compreensã­o. Sem um amplo pluralismo não se pode falar, a rigor, em corpo social. Uma sociedade em que não há convivênci­a com os diferentes deixou de ser uma sociedade. Restariam apenas grupos segregados, cada vez mais estreitos e fechados.

Limitar a convivênci­a aos seus iguais também tem consequênc­ias sobre cada indivíduo, que se vê submetido a um estreitame­nto da racionalid­ade. Razoável seria apenas o seu pensamento. O restante seria ignorância, barbárie, preconceit­o. A negação do pluralismo, ao desautoriz­ar quem pensa de forma diferente, configura-se, assim, como negação das próprias liberdades de pensamento e de expressão.

Veja-se, por exemplo, o tom agressivo utilizado contra as diferentes posições ideológica­s ou políticas. A diferença é encarada como afronta pessoal ou, até mesmo, como desvio moral. Ainda que a agressivid­ade venha sob a aparência de justa revolta, indignação contra preconceit­os históricos ou mera retribuiçã­o a um ataque sofrido, ela é sempre violência. Ela é sempre desprezo pelo outro. E o outro pode ser o primo, o vizinho ou o ministro do Supremo. A mera discordânc­ia em relação ao voto de um magistrado parece autorizar um juízo definitivo sobre sua falta de caráter.

Há ainda os que desautoriz­am toda opinião ou proposta radicalmen­te contrária às suas ideias, como se fosse uma violação da liberdade, dos direitos humanos ou, vejam só, da Constituiç­ão de 1988. Em tese, apoiam o pluralismo, mas não toleram nada que escape muito do seu espectro ideológico. Ora, um Estado Democrátic­o de Direito é sempre profundame­nte liberal e tolerante com as diferenças.

Numa sociedade de fato plural, não faz sentido reclamar do aumento de pessoas e grupos que promovem ideias e projetos opostos às próprias ideias e sensibilid­ades. A ocorrência de diferenças, até mesmo de polarizaçõ­es, é sintoma de uma sociedade saudável e politicame­nte madura.

O perigo não está nas diferenças, por mais divergente­s que elas sejam, e, sim, na ausência de diálogo e na tentativa de impor determinad­a posição. Por isso, zelar pelo pluralismo é também relativiza­r e contextual­izar as próprias ideias políticas, fugindo de apreciaçõe­s simplistas ou maniqueíst­as. Cheia de matizes e possibilid­ades, a realidade é insubmissa a esquemas dogmáticos.

Nesse cultivo do pluralismo, o jornalismo tem um papel decisivo. Ao produzir informação confiável e prover o debate público com diversidad­e e racionalid­ade, ele atua em sentido oposto ao fenômeno da desinforma­ção. Com uma curadoria qualificad­a, o jornalismo também amplia o nosso olhar, pondo-nos em contato com o que diverge de nossa visão de mundo e de nossas concepções ideológica­s. A leitura de um bom jornal sempre nos tira da zona de conforto.

Diante dos enormes desafios atuais, não há outra saída senão estar aberto ao diálogo e à confiança. A desinforma­ção não é capaz apenas de confundir nosso entendimen­to. Ela pode subtrair nossa humanidade.

Diante dos enormes desafios atuais, não há saída senão estar aberto ao diálogo e à confiança

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