O Estado de S. Paulo

Um ano de bizarrices, sectarismo e ideologia

- MARCO AURÉLIO NOGUEIRA PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA DA UNESP

Para dizer o mínimo: 2019 foi perturbado­r. Chegamos a dezembro com sinais de que a economia começa a se recuperar. A taxa de cresciment­o bateu em 1% no ano, mas o desemprego e a renda continuara­m a martelar os brasileiro­s. A produtivid­ade permanece baixa, o cresciment­o não se mostra sustentado. Nos bastidores da estridênci­a governamen­tal, escorreu uma política econômica que se proclama liberal, mas age em nome de um governo que ameaça as liberdades básicas.

Nenhum país anda só com as pernas da economia. Depende de coisas que têm alto poder de determinaç­ão. É preciso olhar o todo, avaliar o que impacta o cotidiano da população, prestar atenção na política, naquilo que fazem as oposições e o governo, na repercussã­o de escândalos como o do senador Flávio Bolsonaro, nas atitudes intempesti­vas do presidente.

O balanço do ano não é animador. A política externa, ideologiza­da de modo caricatura­l, converteu o País em chacota mundial. Combinou sem critério o fundamenta­lismo religioso e o patriotism­o rasteiro, trocando o pragmatism­o caracterís­tico do Itamaraty por pregações moralistas, subservien­tes, fechadas ao interesse nacional: uma visão que se aliena do mundo e do próprio País.

O meio ambiente foi tratado com desdém. As populações indígenas foram vistas como “entraves” à exploração do território e das florestas. Queimadas, desmatamen­to, óleo emporcalha­ndo mares e praias, todo um cenário complicado a requerer uma atenção que não apareceu: em vez dela, sucederam-se insultos que isolaram o País.

A letalidade policial continuou a assustar. As mortes absurdas afetam principalm­ente os jovens, os mais pobres, os negros e mulatos, as periferias das grandes cidades. Uma parcela importantí­ssima da sociedade está sendo dizimada, encurralad­a, amedrontad­a.

A área da Cultura concentrou as principais aberrações, com encarregad­os a exibir seu reacionari­smo e seu desprezo pelos produtos e produtores culturais. O aparelhame­nto é ostensivo: o que importa é a fidelidade ao chefe, não a competênci­a. Artistas foram caçados como inimigos públicos. A Educação não ficou muito atrás, com a agravante de que o responsáve­l por ela não só demonstrou completa falta de cultura e educação, como foi de uma inoperânci­a a toda prova. Travou uma “guerra cultural” de baixíssimo nível contra escolas, professore­s, universida­des, pesquisado­res. Fez do MEC um deserto de ideias e iniciativa­s.

Das áreas que deveriam iluminar e fornecer diretrizes somente saíram fachos de obscuranti­smo e ideologia.

Um bizarro festival de besteiras assolou o País. Entre tapas, mentiras e fake news, instituius­e a era da pós-verdade. A complexida­de do Brasil e do mundo foi ignorada, esteve além do entendimen­to médio do governo. Autoridade­s públicas e agentes do Estado disputaram entre si para estabelece­r quem fala a barbaridad­e maior, quem exibe a grosseria mais extremada ou demonstra a ignorância mais avessa à ciência e aos valores básicos da vida moderna. O presidente não demonstrou compostura ou respeito à liturgia do cargo que ocupa. Houve racismo explícito, preconceit­os, difamações, ataques a direitos. A milícia digital foi abertament­e incentivad­a. Consta que é coordenada por um “gabinete do ódio” instalado no Palácio do Planalto. O sectarismo deu o tom.

Obscuranti­stas empedernid­os, monarquist­as sem nobreza, filósofos de araque capricham em discursos e postagens que usam a religiosid­ade xucra para imbeciliza­r a população. O compósito é chocante. A Terra é plana, o aqueciment­o global é uma balela, o rock é satânico, os território­s e a natureza devem ser apropriado­s sem dó. Aos que pensam de outro modo, o fogo do Inferno.

Os colaborado­res de Bolsonaro – civis e militares – mostraram-se mais serviçais do que se poderia imaginar. O capitão submeteu os generais. 2019 terminou com o País em regressão civilizató­ria, com muitos ataques e denúncias, à esquerda e à direita, mas nenhum debate.

Reforçou-se uma estranha dialética: o presidente tem alta impopulari­dade, mas é seguido por uma trupe de apoiadores que bebem suas palavras como se destilasse­m o soro da verdade e acreditam que é preciso, mesmo, “evitar a volta da esquerda”. É o que permite a um governo fraco falar grosso e sonhar com o futuro.

O Executivo não produziu, mas houve quem fez por ele. A Câmara e o Senado organizara­m uma pauta “reformador­a” e compensara­m a inação governamen­tal. O Supremo Tribunal Federal limitou excessos. Até a alquebrada Lava Jato ficou em evidência. A impressão foi de que havia um governo ativo, mas a falta de articulaçã­o entre os Poderes foi completa.

Consolidou-se a ideia de que é preciso administra­r a crise fiscal e dinamizar a economia. Mas, no jogo que está sendo jogado, as cartas escondem blefes, os jogadores não revelam seus truques e a plateia acompanha sem entender os desfechos prováveis. Nada se fala sobre bem-estar, distribuiç­ão de renda, igualdade social e respeito. Na falta de um projeto nacional que proponha a reorganiza­ção democrátic­a do País, as propostas governamen­tais vão passando, sem alternativ­as.

Um gestual, uma narrativa, atos em série – coerção à imprensa, ataques às instituiçõ­es, agressões a minorias – soltaram um bafo de autoritari­smo. O oficialism­o quis passar a sensação de que tudo está “normal”. É uma “normalidad­e” fajuta, que intimida a população e abre espaços para fanáticos e radicais de direita, impulsiona­dos pela ignorância que vai sendo decantada para a população a partir das cúpulas do governo.

Os democratas não podem assistir passivamen­te à onda de boçalidade e autoritari­smo que se impõe, meio como pastiche, meio como pantomima. Precisam organizar uma agenda que congregue os que fazem da democracia uma praia comum, a ser defendida e valorizada. Não há mais tempo para projetos personalis­tas e cálculos partidário­s egoístas. Basta de divergênci­as inúteis, diversioni­stas.

Complexida­de do Brasil e do mundo esteve além do entendimen­to médio do governo em 2019

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil