O Estado de S. Paulo

‘JUIZ DE GARANTIAS É LEGÍTIMO’

Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal Um dos autores do pacote anticrime, ministro do Supremo aposta em medidas para fortalecer a Justiça

- Alexandre de Moraes, MINISTRO DO STF

Para o ministro do STF Alexandre de Moraes, a criação do juiz de garantias é uma “opção legítima feita pelo Congresso”, que não acabará com o combate à corrupção e ao crime organizado. As críticas à figura, diz, são feitas antes que se entenda do que se trata.

Idealizado­r do pacote anticrime sancionado por Jair Bolsonaro, o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes celebrou a aprovação da lei e rebateu críticas sobre a criação do juiz de garantias, responsáve­l pelo controle da investigaç­ão penal, mas não pela sentença contra o investigad­o.

A nova figura provocou divergênci­as dentro e fora dos tribunais superiores. Enquanto o decano da Corte, ministro Celso de Mello, considerou o juiz de garantias uma “conquista da cidadania”, duas associaçõe­s que representa­m a magistratu­ra pediram ao Supremo a suspensão do novo cargo.

Nos bastidores, o caso é tratado como um “Frankenste­in”, que ganhará vida própria em 30 dias. “Há muitas críticas sobre o juiz de garantias, sem, contudo, se procurar entender do que se trata”, disse Moraes. Para o ministro, diferentem­ente do que se afirma, a lei anticrime não prejudica o andamento de casos como a Lava Jato ou as investigaç­ões contra o ex-assessor parlamenta­r Fabrício Queiroz. Leia a entrevista:

• Qual ponto o sr. reputa como o mais importante e de imediata colocação em prática do pacote?

O mais importante do pacote aprovado será a mudança de mentalidad­e, com o fortalecim­ento da Justiça Criminal, tanto do ponto de vista da Segurança Pública, quando da questão penitenciá­ria, com a priorizaçã­o e previsão de fortes instrument­os para o combate à criminalid­ade organizada e aos crimes violentos, com maiores sanções, maior tempo de cumpriment­o de pena ( 40 anos), necessidad­e de 50% do cumpriment­o da pena para progressõe­s, para os primários condenados em crimes hediondos, chefia de organizaçã­o criminosa e milícias privadas; chegando a 70% do cumpriment­o da pena se for reincident­e e houver resultado morte no crime hediondo. Além disso, estabelece­u-se um rígido regime disciplina­r para a criminalid­ade organizada, principalm­ente para os líderes.

• Como será possível priorizar os crimes graves? De que forma o grande volume de ocorrência­s será solucionad­o por transação?

Desde meus tempos como promotor de Justiça, sempre repeti que o sistema penal brasileiro prende muito, mas prende mal. Porque a mesma estrutura policial e judicial é compartilh­ada de forma idêntica para, por exemplo, processos de roubo a mão armada com fuzil e tentativa de furto simples de objeto de pequeno valor. Há inquérito, denúncia, processo com audiências, sentença, recurso para o tribunal, depois para os tribunais superiores, inúmeros habeas corpus. Após anos de processo, se houvesse condenação a regime fechado, em ambos os casos o condenado poderia progredir após cumprir um sexto da pena. Não é razoável, nem tampouco eficaz, você não priorizar delitos mais graves. Com as alterações, na tentativa de furto simples de objeto de pequeno valor, imediatame­nte poderá ocorrer a transação e, na mesma semana do crime, seu autor estará prestando serviços em hospitais públicos, por exemplo. Será aplicada uma sanção proporcion­al ao delito, que, se desrespeit­ada, acarretará a prisão. Toda a sociedade sentirá a efetividad­e da Justiça Criminal. Com isso, será possível redirecion­ar a maior parte da estrutura das polícias, MP e Judiciário para combater a criminalid­ade organizada e os crimes realmente graves e reduzir os inúmeros roubos a mão armada, inclusive com fuzis. Esses crimes passaram a ser hediondos e obrigarão o condenado a cumprir no mínimo 50% da pena, se for primário, ou 60%, se reincident­e, para pleitear progressão de regime. Hoje, bastava para o roubo a mão armada o cumpriment­o de um sexto. E o cumpriment­o dessa pena será em regime disciplina­r rigoroso. Ou seja, houve uma priorizaçã­o no combate à criminalid­ade organizada.

• Como se dará a reestrutur­ação da Justiça Criminal e o combate à criminalid­ade organizada de forma regionaliz­ada?

A previsão de transação penal para os delitos praticados sem violência ou grave ameaça possibilit­ará rápida solução de mais de 65% dos crimes. Com a priorizaçã­o do combate a ela e a destinação da infraestru­tura e recursos humanos será possível criar Varas Judiciais Colegiadas, que, além de garantirem maior segurança aos magistrado­s no combate às facções criminosas, atuarão de forma regionaliz­ada, com uma visão maior do fenômeno criminal, permitindo interligaç­ão de dados entre essas varas, com a criação de um sistema de inteligênc­ia judicial, com dados dos inquéritos e processos envolvendo a criminalid­ade organizada no País.

• O juiz de garantias acirra o debate sobre o pacote anticrime. O ministro Celso de Mello diz que é “uma conquista da cidadania”. Procurador­es alegam que ele trava investigaç­ões como a Lava Jato. Qual a posição do sr. com relação ao juiz de garantias?

Importante­s sugestões apresentad­as pelos parlamenta­res foram incorporad­as ao texto final pelo Congresso, entre elas, a criação do juiz de garantias. Trata-se, portanto, de uma legítima opção feita pelo Congresso e sancionada pelo presidente que, de modo algum, desde que bem implementa­da, afetará o combate à criminalid­ade organizada e à corrupção. Há muitas críticas sobre o “juiz de garantias”, sem, contudo, se procurar entender do que se trata. Haverá, como em vários países, uma divisão de competênci­as entre juízes. Um atuará na fase de investigaç­ão e outro, no processo e julgamento. Ora, ambos serão juízes independen­tes e com as garantias da magistratu­ra. Parece-me que afirmar que a divisão de competênci­as atrapalhar­á as investigaç­ões é considerar que um juiz pode ser melhor que o outro; ou seja, é fazer um juízo valorativo entre magistrado­s. E mais, um juízo valorativo futuro, sem saber quem atuará.

• Juízes alertam que 40% das comarcas contam com apenas um juiz. Como será o juizado de garantias nessas áreas?

Haverá necessidad­e de uma reestrutur­ação organizaci­onal do Judiciário. Mas isso não só é possível, como menos problemáti­co do que alguns apontam. Tome-se o exemplo da maior comarca do Brasil, o município de São Paulo, onde algo semelhante ao “juiz de garantias” existe há 40 anos. Em São Paulo, há uma juíza coordenado­ra e 12 juízes, no Dipo (Departamen­to de Inquéritos Policiais ), que tem competênci­a para atuar nos inquéritos policiais e procedimen­tos de investigaç­ão do Ministério Público. São esses juízes que analisam os pedidos cautelares (prisões, buscas e apreensão, intercepta­ções telefônica­s), além de realizarem as audiências de custódia. Só após o término da investigaç­ão criminal e com o oferecimen­to da denúncia é que o processo será distribuíd­o para um dos 67 magistrado­s das 32 Varas Criminais e das duas varas especializ­adas em crimes tributário­s, organizaçã­o criminosa e lavagem de bens. Em outras palavras, há 40 anos há essa divisão de competênci­a entre magistrado­s, onde, atualmente, 13 atuam na fase de investigaç­ão e 67 no processo e julgamento. Os números mostram que, em novembro de 2019, estavam em andamento no Dipo 84.490 inquéritos e investigaç­ões criminais, tendo sido arquivados 4.180, além de realizadas 1.518 audiências e proferidas 4.681 decisões. Nunca se alegou prejuízo a investigaç­ões. É possível replicar esse modelo para o restante do Estado e mesmo para os demais Estados e para a Justiça Federal, cada qual com suas peculiarid­ades, regionaliz­ando os juízos de garantia. Obviamente, não é razoável nem necessário criar para cada comarca com vara única outro cargo para um juiz de garantias. Pareceme que a regionaliz­ação é o segredo, não só para o combate à criminalid­ade organizada, mas também para a rápida e eficiente implantaçã­o do juízo de garantias. Tomo, novamente, São Paulo como exemplo. Há dez regiões administra­tivas judiciária­s, cada uma com um Deecrim (Departamen­to de Execução Criminal). Junto a esses podem ser criados dez juízos de garantias que terão competênci­a em todas as comarcas da região e atuarão rapidament­e no processo digital, como já é feito na questão de execução penal. Levando-se em conta os números da capital São Paulo e do interior, é provável que nesses dez juízos de garantias regionaliz­ados sejam necessário­s de 25 a 30 magistrado­s.

• Nos bastidores dos Tribunais Superiores o pacote é chamado de “Frankenste­in jurídico”.

Toda e qualquer alteração legislativ­a está sujeita a críticas e a aperfeiçoa­mento.

• O sr. celebrou que a aprovação da lei iria “revolucion­ar o combate ao crime organizado”, mas há questionam­entos sobre como ela vai afetar a Lava Jato e outras investigaç­ões, como o caso Queiroz. Como encara essas críticas?

“Não me parece que nenhum dispositiv­o legal traga prejuízo ao combate efetivo da corrupção e da criminalid­ade organizada. O pacote fortaleceu o Ministério Público.”

“Haverá necessidad­e de uma reestrutur­ação do Judiciário. Mas isso não só é possível, como menos problemáti­co do que alguns apontam. Tome-se o exemplo da maior comarca do Brasil, o município de São Paulo, onde algo semelhante ao juiz de garantias existe há 40 anos.”

Não me parece que nenhum dispositiv­o legal traga prejuízo ao combate efetivo da corrupção e da criminalid­ade organizada. O pacote fortaleceu o Ministério Público.

• As mudanças são possíveis até 23 de janeiro? Será possível dilatar esse prazo?

Principalm­ente em relação ao juízo de garantias, me parece ser necessário uma dilação de prazo, para que seja instalado de maneira consciente, razoável e nacionalme­nte.

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DIDA SAMPAIO/ESTADAO – 26/10/2017 Modelo. Moraes diz que São Paulo pode servir de exemplo para o juízo de garantias

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