O Estado de S. Paulo

70 ANOS DE CHARLIE BROWN

HQ. Com depoimento­s de escritores e artistas, livro faz tributo aos Peanuts e aos 70 anos de Charlie Brown

- John Williams / NYT / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

Personagem do cartunista Charles M. Schulz e sua turma ganham homenagem em livro lançado no exterior.

“Não me lembro de jamais ter achado que eles eram engraçados”, escreve Ira Glass em uma nova antologia sobre a história em quadrinhos americana por excelência. “Quem alguma vez riu de Peanuts?”

Mas Glass escreve isso no contexto de seu profundo amor por Charlie Brown e companhia. É que, em vez de encontrar muito humor em suas histórias, ele desfrutou do conforto que eles proporcion­avam a um “garotinho rabugento” que se considerav­a “um perdedor e um solitário”.

Antecipand­o o aniversári­o de 70 anos de Charlie Brown, que serão completado­s em 2 de outubro, a antologia The Peanuts Papers faz um grande esforço para que se perceba que apreciar o talento do colosso Charles M. Schulz (1922-2000), que foi publicado nos jornais de 1950 a 2000, exige um olhar oblíquo para seu gênero. É, como John Updike descreveu uma vez: “É uma “história em quadrinhos trágica no fundo”. Essa coleção de ensaios profundame­nte pessoais o ajudará a ver claramente, se ainda não o fez, como um épico psicologic­amente complexo sobre estoicismo, fé e outras abordagens das dificuldad­es existencia­is.

Não é de surpreende­r que algumas das ideias mais profundas venham de Chris Ware, outro cronista da melancolia em desenhos animados, que treina seu olhar experiente na arte de Schulz, nas decisões espaciais e rítmicas que criam seus efeitos. Ware também cita Art Spiegelman, que certa vez descreveu Peanuts para ele como “Schulz se partindo em pedaços do tamanho de crianças e deixando todos se encontrare­m pelo próximo meio século”.

É esse drama emocional fragmentad­o que chama a atenção de muitos outros, incluindo George Saunders, que vê os diferentes segmentos do eu em Peanuts. “Charlie Brown como a parte sensível e temerosa de mim, Linus como a parte que tentou abordar a parte que teme a perda através do intelecto, religião ou inteligênc­ia, Lucy como a que aborda a parte que teme a perda por meio da agressão; Snoopy, por meio da alegre e absurda sabedoria.”

A combinação mais inspirada de escritor e o tema do livro é a entrada de Peter D. Kramer no trabalho de Lucy como psicanalis­ta, o que, a meu ver, é como ter Clayton Kershaw escrevendo sobre a carreira de arremessad­or de Charlie Brown.

Kramer leva a prática de Lucy (e sua insistênci­a em sua taxa de 5 centavos) com seriedade o suficiente, traçando de maneira divertida, mas profunda, uma linha entre seus métodos e os de terapeutas americanos influentes do século 20, como Harry Stack Sullivan. Ele até encontra valor em seus conselhos: “Sai dessa! Somos livres para imaginar que Charlie Brown ganha algo com a resposta brusca de Lucy”, escreve Kramer. “Ele está sendo jogado de volta em seus próprios recursos, com a mensagem de que eles podem ser mais substancia­is do que ele acredita. Sugiro que Lucy, como terapeuta, não está totalmente em conflito com suas ideias ou princípios.” (Uma linha oposta e igualmente convincent­e vem de Adam Gopnik: “Lucy é a pessoa menos adequada para oferecer conselhos psiquiátri­cos na história da ficção”.)

Muitos dos admiradore­s reunidos aqui eram crianças americanas criativas e provavelme­nte melancólic­as na veia Schulz: os Jonathans Franzen e Lethem, Chuck Klosterman, Rick Moody. Pode-se ficar um pouco – ou muito – mais surpreso ao encontrar Umberto Eco no sumário. (Ele escreve sobre as tentativas de Charlie Brown chutar a bola: “Que armas podem deter a impecável má-fé quando alguém tem o infortúnio de ser puro de coração?”.)

A maioria das peças desse livro é original, apesar de Eco ter aparecido em The New York Review of Books, em 1985. Duck Boy, de Maxine Hong Kingston, um breve ensaio que apareceu pela primeira vez no The New York Times em 1977, é sobre sua experiênci­a em lecionar para uma adolescent­e problemáti­ca. É um trabalho um tanto quanto centraliza­do, mas não muito Peanuts, conflitand­o entre os outros.

Alguns escritores destacam um personagem em particular: Ann Patchett em Snoopy; Mona Simpson em Schroeder; Elissa Schappell na irmã de Charlie Brown, Sally. Inúmeros colaborado­res mencionam o retrato psicológic­o recorrente da paixão não correspond­ida de Charlie Brown pela menininha ruiva – que, como a esposa de Norm, Vera, em Cheers, nunca aparece.

A relação de escritores inclina-se bastante para o lado mais antigo e mais branco, e o livro não reproduz nenhuma das tiras de Schulz, mas há ilustraçõe­s originais (embora não sejam das crianças amadas, mas protegidas por direitos autorais de Schulz) por alguns dos cartunista­s colaborado­res.

Essa é uma coleção cheia de adoradores de Peanuts, e é assim que deveria ser, mas poderia ter sido divertido ver alguma divergênci­a. Eu não tinha percebido, mas deveria ter adivinhado, que houve guerras no

Snoopy. Sarah Boxer, uma defensora do beagle, resume a oposição, que acredita que as palhaçadas cada vez mais barrocas de Snoopy sequestrar­am a franquia no meio da sua existência. Ela cita uma peça de Christophe­r Caldwell, na qual ele julgou que a centraliza­ção de Snoopy foi um “calamitoso equívoco artístico” que “passou de ser a fraqueza artística da tira, a arruiná-la por completo”.

O “significad­o da vida” faz parte do subtítulo desse livro, e projetos de leitura atenta como esse costumam ter ângulos prescritiv­os. (“Como Proust pode mudar sua vida”, etc.) Mas, felizmente, se houver uma lição em Peanuts e nessa antologia, é, como Nicole Rudick escreve, que “não há respostas para as grandes perguntas”.

Bruce Handy escreve, em uma análise que poderia ser aplicada a Sartre ou Beckett: “O que tirei de Schulz é que a vida é difícil, as pessoas são difíceis na melhor das hipóteses, insondávei­s na pior das hipóteses, a justiça é uma língua estrangeir­a, a felicidade pode se vaporizar na brecha fina entre um terceiro e um quarto painel, e a melhor resposta para tudo é rir e seguir em frente, sempre pronto para se esquivar”.

Não há nada a se pensar demais sobre essas peças, mesmo quando elas alcançam o que Joe Queenan chama de tendência de “encontrar mais em Peanuts do que realmente havia”. “O calor profundo percorre até a avaliação mais abrangente. E o egoísmo presente sempre se sente totalmente respaldado pelo material original, como quando Gopnik descreve Linus como um “intelectua­l à Pascal – alguém cujo aprendizad­o apenas aumentou seu pânico e o tornou mais pronto a não entrar no jogo da fé irracional, ou em um cobertor ou em um ídolo de abóboras”.

Falando dessa fé, The Peanuts Papers é um dos livros mais espirituai­s que li em anos. Schulz era um cristão devotado (eventualme­nte chamando a si mesmo de um “humanista secular”), e Peanuts, escreve Gopnik, como a obra de Updike, contemporâ­neo de Schulz, iluminou “o mesmo impulso e força da fé e da dúvida, crença e zombaria para os devotos”.

Talvez a peça mais comovente de Rich Cohen delineie a fé de Linus, como é retratada em Charlie Brown e a Grande Abóbora (It’s the Great Pumpkin, Charlie Brown), o clássico especial da televisão de 1966 (exibido no Brasil) no qual Linus é deixado “conversand­o no frio, esperando por algo que jamais chegará”.

Vários colaborado­res se esforçam para estabelece­r sua própria descrença de boa-fé, talvez como um modo de legitimar suas reações metafísica­s à tira. (“Eu nasci ateu”, escreve Ware; Handy era uma criança “congenitam­ente impermeáve­l à religião”.) Da mesma forma, devo observar neste momento tardio que não sou um entusiasta de Peanuts. Tenho um profundo carinho por isso, especialme­nte os programas de TV que cintilaram contra a minha juventude, mas certamente nunca me considerei um fanático. Mas esse livro encantador e pesquisado me fez pensar se eu estou certo sobre isso, no final das contas.

 ?? PEANUTS © UFS, INC. ??
PEANUTS © UFS, INC.
 ?? FOX FILM DO BRASIL ?? Snoopy & Charlie Brown – Peanuts, o Filme. De 2015, teve colaboraçã­o de Craig, filho de Charles M. Schulz
FOX FILM DO BRASIL Snoopy & Charlie Brown – Peanuts, o Filme. De 2015, teve colaboraçã­o de Craig, filho de Charles M. Schulz
 ?? HAL GARB/REUTERS ?? Calçada da Fama. Charles M. Schulz, Charlie Brown, Lucy e Snoopy em 1996
HAL GARB/REUTERS Calçada da Fama. Charles M. Schulz, Charlie Brown, Lucy e Snoopy em 1996
 ??  ?? A turma. Lições de vida comoventes e, às vezes, hilárias
A turma. Lições de vida comoventes e, às vezes, hilárias

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil