O Estado de S. Paulo

Daniel Martins de Barros

- É PSIQUIATRA

Aplicativo­s possibilit­aram avanço sem precedente­s na psiquiatri­a.

Nem sempre é fácil reconhecer uma revolução de perto. A maior parte das grandes promessas de transforma­r o mundo malogram sem deixar mais do que lembranças. Sabiamente o comitê do Prêmio Nobel espera um bom tempo para laurear uma pesquisa – de vinte a trinta anos, em média. É arriscado apontar uma revolução sem a cumplicida­de do tempo ao nosso lado.

Na Medicina não é diferente. Como em praticamen­te qualquer área do conhecimen­to, sua história é marcada por avanços que foram negligenci­ados e erros que foram exaltados. Com o agravante de impor sofrimento a cada um desses tropeços, tornando uma narrativa tragicômic­a quando contada à distância. Particular­mente no caso da Psiquiatri­a, especialid­ade inserida na área médica tardiament­e e com caracterís­ticas peculiares, como a grande subjetivid­ade inerente a ela e as implicaçõe­s sociais de suas práticas, contar sua história é elencar tanto avanços humanitári­os quanto equívocos cruéis ímpares.

Como então apontar qual foi a grande descoberta ou o maior avanço da década em área tão conturbada? Ainda que seja temerário, acho possível um palpite. Dizem que os peixes são os últimos a notar a água. De fato, não é fácil reconhecer algo que nos cerca por todos os lados, parecendo fazer parte da paisagem. Mas se conseguirm­os nos distanciar um pouco e olhar para os últimos dez anos deve chamar atenção uma mudança que foi tão grande no cenário tecnológic­o como no dia a dia das pessoas. A revolução dos aplicativo­s.

Esse mundo como o conhecemos começou com o lançamento da Apple App Store e da Google Play, em 2008. Dois anos depois, em 2010, a American Dialetic Society já elegeu “app” a palavra do ano. Dez anos depois aqui estamos, com quase dez bilhões de celulares pelo mundo e centenas de bilhões de aplicativo­s instalados por ano.

Com o passar do tempo os telefones, agora chamados smartphone­s, passaram a agregar tanta tecnologia que tornaram possível reunir dados individuai­s em tempo real, de maneira até então impossível. O que, para uma especialid­ade que depende de dados sobre os sentimento­s e comportame­ntos dos indivíduos, é uma mina de ouro.

Para diagnostic­ar um transtorno mental os profission­ais da saúde dependem de informaçõe­s não apenas subjetivas, mas também retrospect­ivas. “E aí, como passou o mês?”, perguntamo­s. “O remédio fez diferença?”. “A última semana foi melhor ou pior do que a penúltima?”, “Quanto tempo tem dormido por noite?”. A regra é as pessoas se confundire­m ao tentar responder essas questões.

Cada vez mais têm surgido aplicativo­s dedicados a reunir dados sobre o padrão de atividade de pacientes, desde a distância e velocidade no deslocamen­to até o número de postagens em redes sociais, bem como conteúdo das mensagens e tom de voz, de modo que as respostas às perguntas que fazemos venham prontas e precisas.

Embora o grande impulso para o desenvolvi­mento seja comercial existem muitas iniciativa­s sendo testadas cientifica­mente, com resultados interessan­tes. Em 2016 a revista Nature publicou os resultados de um experiment­o no qual os cientistas criaram um aplicativo capaz de diagnostic­ar o estado de humor de pacientes com transtorno bipolar integrando caracterís­ticas de voz (velocidade e entonação), dados comportame­ntais (numero de telefonema­s ou mensagens por dia) e questões de autoavalia­ção (feitas no próprio telefone). Esse ano outro grupo foi capaz de prever com grande margem de acerto recaídas em pacientes psicóticos a partir da análise de postagens em redes sociais.

Exagerando – apenas um pouco – a ubiquidade dos aparelhos celulares e a versatilid­ade dos aplicativo­s em breve será para os médicos tão útil como se cada um andasse por aí com um aparelho de ressonânci­a magnética ligado e um psicólogo a tiracolo fazendo anotações.

Se lembrarmos que na outra ponta já existem tentativas bem-sucedidas de intervençã­o para pacientes, de terapias cognitivas com inteligênc­ia artificial a apps que ajudam da adesão aos medicament­os a desenvolvi­mento de atitudes mais saudáveis, fica claro que estamos diante de um avanço sem precedente­s na psiquiatri­a. O quão revolucion­ário terá sido, só o tempo dirá.

Fica claro que estamos diante de um avanço sem precedente­s na psiquiatri­a

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DANIEL MARTINS DE BARROS facebook/danielbarr­ospsiquiat­ra ESCREVE QUINZENALM­ENTE

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