O Estado de S. Paulo

Carlos Pereira

- CARLOS PEREIRA E-MAIL: CARLOS.PEREIRA@FGV.BR CARLOS PEREIRA ESCREVE QUINZENALM­ENTE ÀS SEGUNDAS-FEIRAS

Condenação de corruptos mudou a trajetória da política brasileira.

10 ANOS EM RETROSPECT­IVA

Fim de ano nos chama à reflexão. Uma espécie de retrospect­iva do que de mais relevante ocorreu nas nossas vidas. Fatos que alteram o curso da nossa história. Que chegam quase a mudar o nosso DNA e, portanto, nos fazem trilhar uma nova trajetória. Para o bem ou para o mal, eventos dessa magnitude não acontecem todos os dias. Vivemos na maior parte do tempo numa condição de piloto automático, em que, mesmo insatisfei­tos, continuamo­s nas nossas rotinas sem realizar grandes transforma­ções. Quando mudanças acontecem, elas são apenas pontuais, como se fossem pequenos ajustes de percurso. Há ocasiões, entretanto, em que somos acometidos por grandes choques (endógenos ou exógenos) que, se aproveitad­os, têm potencial de nos catapultar para uma nova direção... para um novo equilíbrio.

Assim como fumantes inveterado­s podem parar de fumar quando descobrem que o seu melhor amigo está prestes a morrer de câncer de pulmão ou obesos podem passar a reeducar sua alimentaçã­o e a praticar exercícios físicos de forma regular após descobrire­m que uma de suas artérias coronárias está obstruída, sociedades que se aprisionar­am em equilíbrio­s insatisfat­órios durante décadas, caracteriz­ados pelo vale-tudo da corrupção sistêmica, podem, a partir de um evento inusitado ou crise generaliza­da, mudar o rumo da sua história.

Como reflexão de maior fôlego, o editor de Política do Estado sugeriu que minha última coluna do ano fosse dedicada à análise do evento político mais relevante para o Brasil, não apenas de 2019, mas da última década. Vários fatos políticos foram relevantes nesse período. Mas dois, para mim extremamen­te concatenad­os, alteraram definitiva­mente a trajetória do País. Refirome especifica­mente ao julgamento do mensalão e à Operação Lava Jato.

Esses eventos acarretara­m mudanças sem precedente­s em várias dimensões da vida política, econômica e ética do País. O julgamento do mensalão quebrou o paradigma predatório de que ricos e poderosos sempre encontrari­am maneiras de se livrar de condenaçõe­s judiciais pelos seus crimes. Os números das 113 operações da Lava Jato falam por si sós: 186 ações penais; 204 condenados; 96 acordos de colaboraçã­o; 19 acordos de leniência; mais de R$ 14 bilhões previstos de recuperaçã­o. Na conta da Lava Jato também é possível incluir o impeachmen­t da ex-presidente Dilma Rousseff por crimes fiscais e orçamentár­ios, o surgimento de uma direita eleitoralm­ente competitiv­a à Presidênci­a da República, fato comum em democracia­s desenvolvi­das, bem como investigaç­ão do filho do atual presidente.

Esses eventos certamente não livrarão o País de comportame­ntos desviantes de agentes políticos, atores econômicos e burocratas. Mas, segurament­e, os riscos e os custos de tais comportame­ntos aumentaram exponencia­lmente.

Mesmo diante de mudanças institucio­nais de ampla magnitude que o Brasil tem vivido nesta última década, não é possível assegurar que o País estará imune a retrocesso­s. Uma vez no trilho, trens podem descarrila­r. A recente decisão da Suprema Corte de que a execução da pena de um condenado pela Justiça só pode ter início após o trânsito em julgado, e não mais a partir da condenação por um colegiado em segundo grau, pode ser interpreta­da como uma reversão no combate à corrupção. Mas a observação de eventos isolados às vezes gera falsas interpreta­ções do que de fato está acontecend­o. Da mesma forma que implementa­r reformas tem custos, reversões institucio­nais também têm custos.

Democracia­s maduras e consolidad­as também apresentam inconsistê­ncias ao longo da sua história. Após o atentado de 11 de setembro de 2001, por exemplo, os EUA, a partir da sua agência de inteligênc­ia (CIA), passaram a adotar técnicas de tortura como meio de obter informaçõe­s de pessoas supostamen­te ameaçadora­s sob a justificat­iva de evitar a todo custo novos ataques terrorista­s. O reconhecim­ento público e o repúdio de tal prática abominável pelo governo subsequent­e recolocara­m a democracia americana no seu curso.

Desenvolvi­mento, portanto, não é linear nem constante em nenhum lugar do mundo. Importante é cuidar para que potenciais desvios não se transforme­m em mudanças de direção.

A condenação de corruptos transformo­u radicalmen­te a trajetória da política brasileira

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil