O Estado de S. Paulo

Perigo na política externa

- ALBERTO DO AMARAL JÚNIOR PROFESSOR DE DIREITO INTERNACIO­NAL DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDA­DE DE SÃO PAULO

Universalm­ente respeitada pelo profission­alismo e pela competênci­a, a política externa corre sério risco: a perda de credibilid­ade. Falta direção ao Itamaraty, que não tem postura clara sobre a dimensão do Brasil no cenário internacio­nal.

A eventual admissão do País na Organizaçã­o para Cooperação e Desenvolvi­mento Econômico (OCDE) e o acordo entre Mercosul e União Europeia não contrariam essa opinião. Primeiro, ainda que positivo, o ingresso na OCDE não nos torna desenvolvi­dos, a exemplo do México e da Turquia. Segundo, o acordo entre o Mercosul e a União Europeia começou a ser negociado em 1999 e estava praticamen­te concluído no final de 2018. É, portanto, um caso de política de Estado. Referido compromiss­o, que ainda necessita de aprovação parlamenta­r, só foi assinado graças à decisão brasileira de permanecer no Acordo de Paris sobre mudança climática e cumprir as metas ali ajustadas.

A política externa segue, na verdade, como política pública, os mesmos valores que orientam a ação do governo. A alarmante devastação da Floresta Amazônica evidencia concepção superada do desenvolvi­mento e a defesa da soberania sobre nosso território, alardeada pelo presidente, não figura na pauta diplomátic­a internacio­nal. Dilapidar a natureza reflete concepção estreita do interesse nacional, incompatív­el com o século 21. A negação de que a mudança do clima é produto dos atos humanos redundou na abstenção do Brasil em assumir compromiss­os em conformida­de com as metas propostas pelo secretário-geral das Nações Unidas. Aliado às razões éticas, políticas e econômicas que nos devem motivar, o Brasil, pelo capital ecológico de que dispõe, precisa reconquist­ar protagonis­mo no domínio da proteção ao meio ambiente.

As sucessivas declaraçõe­s presidenci­ais ameaçam um dos mais importante­s ativos da política externa: a capacidade de despertar confiança. O apreço por regimes autoritári­os, o elogio a ditaduras e a justificaç­ão de violações internacio­nais dos direitos humanos, além de contrariar­em a Constituiç­ão, mancham a imagem brasileira no mundo. O discurso proferido na abertura da Assembleia-Geral da ONU neste ano pelo presidente explicita o abismo entre a retórica e a prática; proclamaçõ­es ufanistas afastaram referência­s substantiv­as à política de desenvolvi­mento sustentáve­l da Amazônia. Afirmações ambientais vagas que não têm prova científica, acusações a adversário­s internos e a condenação ao suposto colonialis­mo europeu em relação à Amazônia estão muito abaixo do que era legítimo esperar. A indivisibi­lidade do meio ambiente, ao contrário da soberania, que se encontra repartida entre os Estados, torna a devastação da floresta assunto de alcance global.

A política externa exibe, de forma preocupant­e, as caracterís­ticas do atual governo:

• O desconfort­o com o pluralismo. As sociedades democrátic­as são pluralista­s, ou seja, constituíd­as por grupos e classes com diferentes concepções sobre a vida, a religião, a política e as relações interpesso­ais. Combater o pluralismo é eliminar parte da riqueza própria ao gênero humano. O contrário do pluralismo é a homogeneid­ade, que apaga as diferenças e cala as vozes dissidente­s. Na política externa, o desconfort­o com o pluralismo aparece nas declaraçõe­s favoráveis à manutenção de relações diplomátic­as privilegia­das com Estados cujos governos compartilh­am o pensamento defendido em Brasília. Há flagrante contradiçã­o entre essa conduta e o desejo, expresso pelo presidente e pelo chanceler, de abolir a ideologia do Itamaraty. Isso não é possível, pois a ideologia é um programa, uma visão do mundo, um conjunto hierárquic­o de valores que informa e conforma as decisões.

• O repúdio às instituiçõ­es. Assim como na esfera doméstica o presidente diz ser o único representa­nte direto da vontade do povo, para a política exterior atual as organizaçõ­es multilater­ais ocupam papel secundário, merecendo atenção apenas em raras ocasiões. O mesmo ocorre com acordos multilater­ais que regulem questões de interesse comum. O Itamaraty mostra clara preferênci­a pelo relacionam­ento bilateral entre os países, em contraste com a ampliação de temas a exigirem participaç­ão conjunta dos Estados. Da economia ao meio ambiente, da saúde à cultura, da manutenção da paz à proteção dos direitos humanos, o multilater­alismo é inafastáve­l imperativo.

• As manifestaç­ões ou críticas de governos estrangeir­os e organizaçõ­es internacio­nais são vistas como atos contrários à soberania nacional. Retratam, nessa perspectiv­a, “conspiraçõ­es” globais que afetam os interesses do País e causam as nossas mazelas.

• A versão substitui o fato na busca de apoio aos governante­s, sem considerar os critérios que distinguem o falso do verdadeiro.

• O legalismo discrimina­tório, isto é, o uso de dois pesos e duas medidas: para os países amigos, a benevolênc­ia; e para aqueles que não são simpáticos é invocada a aplicação da lei internacio­nal.

• A hostilidad­e às organizaçõ­es não governamen­tais. Independen­temente de nacionalid­ade, são combatidas por supostamen­te interferir­em na realização dos interesses brasileiro­s. A crise do Fundo Amazônia, que contava com a participaç­ão da sociedade e sobrevivia graças às doações alemãs e norueguesa­s para a preservaçã­o da floresta, ambas suspensas, ilustra bem o comportame­nto do governo.

Afora essas caracterís­ticas, que definem o populismo para Jan-Werner Müller, o alinhament­o automático do Brasil às posições internacio­nais da administra­ção Trump, apregoado pelo Itamaraty, despreza o interesse nacional, como prova o anúncio do presidente norteameri­cano relativo à imposição de tarifas às exportaçõe­s de aço e alumínio pelo Brasil e pela Argentina. A credibilid­ade da política externa, consolidad­a desde a proclamaçã­o da República, é subitament­e esvaziada do prestígio e da autoridade que longamente acumulou.

Sua credibilid­ade é esvaziada do prestígio e da autoridade que longamente acumulou

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