O Estado de S. Paulo

‘País precisa ver segurança como direito coletivo’

Diretora do Instituto Sou da Paz adverte: cabe à União ajudar Estados a combater o crime

- Carolina Ricardo

O Brasil entra na virada de ano com a notícia de que aumentou em 48%, desde janeiro, o registro de armas pelos cidadãos – foram 70,8 mil novos pedidos. Ao lado disso, é informado de que, do R$ 1,7 bilhão disponível para a segurança e combate à criminalid­ade, só 13% foram liberados aos Estados pelo governo federal.

O governo “focou muito na pauta legislativ­a, na flexibiliz­ação do controle de armas e menos na criação de políticas públicas na área de segurança”, alerta Carolina Ricardo, diretora executiva do Instituto Sou da Paz. Ou seja, ignorou políticas de prevenção, a integração das polícias civis e militares, e deixou de lado o apoio aos Estados, “que têm sido os grandes responsáve­is por implementa­r políticas de segurança para a população”. Trata-se de um apoio essencial “para que possam de fato atuar e reduzir o crime”.

Advogada, com passagens como consultora pelo Banco Mundial, pelo BID e por instituiçõ­es do Canadá, Carolina é desde setembro diretora executiva do instituto, que se dedica há 20 anos a estudar e reduzir a violência no País. À coluna, ela afirma: “O presidente (Bolsonaro) ainda não tirou o chapéu de legislador” e trata o assunto com decretos e projetos de leis. “Mas não é endurecend­o penas, mudando a legislação penal, que se resolverá o problema da violência”. A população, segundo ela, “deveria trabalhar com o Estado, pressioná-lo para que garanta o direito à segurança pública, que é um direito coletivo”. A seguir, os principais trechos da entrevista.

A segurança pública foi uma das maiores bandeiras de Bolsonaro na campanha. Qual balanço faz do primeiro ano do novo governo nessa área? Observamos uma priorizaçã­o do governo em algumas pautas legislativ­as. Isso é comum no Brasil, historicam­ente. Há um foco grande ao pensar segurança na mudança de leis. E pode ser problemáti­co porque, ainda que a gente precise mudar leis, precisamos de políticas públicas de segurança.

Dados recém-divulgados da PF mostram um aumento de 48% no registro de armas de um ano para outro. E cresciment­o grande no número de armas em mãos de caçadores, atiradores e colecionad­ores, os CACs. Como vê isso?

É importante diferencia­r uma coisa da outra. Os registros da PF são de pessoas físicas que têm aquela sensação de defesa tendo armas em casa. É um problema grave. A arma em casa, além de não promover segurança ou defesa, pode agravar as situações. Isso ocorre porque o acesso a armas ficou muito na agenda ao longo do ano – foram oito decretos e um projeto de lei tramitando, indo agora para o Senado. O fato é que as pessoas têm medo e não veem uma resposta concreta do Estado em sua defesa.

E o cresciment­o dos atiradores e colecionad­ores?

Já os CACs são uma categoria bem específica que a gente considera vulnerável – são setores onde o desvio de armas é mais fácil de ocorrer. Há uma flexibiliz­ação excessiva para esses setores e um aumento exponencia­l das armas adquiridas, além de uma baixa capacidade do Exército de fiscalizar.

Se fosse apontar, no caso, uma meta prioritári­a, qual seria?

As evidências mostram que o se faz preciso no Brasil é controlar a circulação de armas de fogo. Tirar a arma ilegal de circulação sim, e não flexibiliz­ar e aumentar o número de armas.

O Sou da Paz mapeou 24 medidas do governo na área de segurança, sendo 15 ruins, 6 positivas e 3 incertas. Pode explicar?

O grosso dessas ações se relaciona a ações legislativ­as. Parece que o presidente (Jair Bolsonaro) ainda não tirou o chapéu de legislador, quando coloca o foco e a energia em decretos, projetos e portarias. Há muito o Sou da Paz acena pra isso, não é mudando leis, endurecend­o penas, criando novos tipos penais que a gente vai resolver o problema da violência.

E quanto às ações positivas?

É óbvio que a gente identifica essas ações, como a atualizaçã­o do Sinesp (Sistema Nacional de informaçõe­s sobre Segurança Pública). Já é um grande avanço juntar os dados criminais dos 27 Estados. Também houve investimen­to na inteligênc­ia, com a criação de centros integrados sobretudo no Nordeste, para combater o crime organizado. Acrescento aqui que, recentemen­te, o presidente do STF, Dias Toffoli, obrigou o governo federal a fazer os repasses do Fundo Nacional de Segurança aos Estados – ele julgava uma ação de 25 Estados. É que a equipe econômica havia contingenc­iado esses gastos – coisa que a lei não lhe permite fazer.

Acredita que existe hoje uma retórica de argumentaç­ão em defesa das armas? Existem hoje formadores de opinião, vídeos no Youtube, uso de dados... Como o Instituto Sou da Paz, que atua na área da segurança pública há 20 anos, vê esse tipo de conteúdo? Quando a gente olha a história da discussão sobre controle de armas no País, é importante lembrar que, em 2005, no referendo que consultou os eleitores sobre a proibição ou não da venda de armas e munições no Brasil, venceu o “não”. Foi proibido proibir. Naquele momento mudou-se a linha argumentat­iva desse assunto. A defesa individual ganhou espaço no debate nacional a respeito. E é importante ressaltar: não se trata de dizer que as pessoas não possam se defender, mas é um direito individual que ganha um espaço muito maior do que outros – como o direito à liberdade como um todo, o direito à vida, por exemplo.

A eleição do Bolsonaro fortaleceu essa narrativa?

Acho que a eleição do presidente Bolsonaro concretiza essa visão de que a arma garante o direito de defesa e, de que, se o Estado intervier, estará violando esse direito individual.

E como lidar com o medo das pessoas de serem atacadas? Elas precisam de respostas mais efetivas e rápidas... Embora o Brasil tenha reduzido indicadore­s de violência ao longo dos últimos 10 anos em Estados específico­s, o País entregou muito pouco no que se refere às políticas de segurança. Então, o cidadão também não vê muita alternativ­a para reduzir a violência – e dessa forma torna-se mais fácil aceitar medidas milagrosas, como a ideia da defesa individual com a arma de fogo. Existe aí um deslocamen­to da discussão. A população deveria trabalhar com o Estado, pressionar para que ele garanta o direito à segurança pública, que é um direito coletivo.

E quais são as maiores dificuldad­es para isso acontecer?

As pessoas estão sem ter pra onde correr. No entanto, é preciso esclarecer que a arma potenciali­za o risco de morte. As poucas pesquisas que existem mostram que uma pessoa armada que se envolve em um latrocínio tem mais chance de morrer do que a pessoa que não está armada.

Houve, no País, uma redução dos homicídios. Como avalia os números?

Essa redução, em alguns Estados, acontece já há algum tempo. Tem Estado que reduziu as vítimas em 2015 e 2016, 2017 aumentou, em 2018 caiu de novo. Não dá pra atribuir a nada que tenha começado com mais força agora, neste governo.

O que explica essa redução? Há Estados que têm investido em segurança pública. O Espírito Santo vem reduzindo os números há alguns anos e adota uma política de gestão para resultados. De que forma? Integrando as polícias, monitorand­o os resultados. O governador senta-se com o pessoal da área, cobra os indicadore­s e faz disso uma prioridade.

E o Estatuto do Desarmamen­to nesse contexto?

A aprovação do Estatuto mudou totalmente a estrutura do controle de armas. Quando você tem um bom sistema de controle de armas, em que a polícia tira arma de circulação e a usa para investigar outros crimes, para esclarecer homicídio, quando rastreia a arma para mapear de onde ela vem, isso também é importante na redução de homicídios.

Acha que essa discussão é prejudicad­a pela polarizaçã­o? Armamentis­tas afirmam, por exemplo, que quem é a favor do controle de armas é a favor do crime.

Quem já teve contato com os profission­ais sérios de segurança, que não estejam volvidos numa perspectiv­a ideológica, sabe que é mais difícil fazer segurança pública quando as pessoas têm a chance de estarem armadas. Já é difícil para um policial quando um simples suspeito ou um criminoso está armado. Daí, se boa parte da população puder estar armada, o impacto no trabalho da polícia é gigantesco. Não é questão de ser contra a arma ou a favor, acho que esse é um outro ponto também.

Pode explicar melhor? Ninguém é contra a arma, mas ela é um instrument­o e como tal tem que ser controlada. Como um veículo tem controles importante­s, como a carne que é exportada de um País para outro sofre controle super-rígido, a arma também precisa ser controlada. Por quê? Diferentem­ente de outros instrument­os, ela tem uma finalidade principal que não é defender, é atacar. É matar. Então ela precisa ser submetida a esses controles. “As pessoas falam: “Ah, mas o carro também mata”. Pois é, o veículo é um bom exemplo. Você tem muitos controles: radar, registro do veículo, necessidad­e de renovar sua CNH, submeter-se antes a provas de visão, de saúde e até a testes psicológic­os.

‘NINGUÉM É CONTRA A ARMA. MAS ELA TEM DE SER CONTROLADA’

O que é acha que se poderia fazer para alimentar na sociedade a cultura da paz?

A primeira coisa que a gente precisa fazer eu acho que é conhecer um pouco mais a fundo o tema. Buscar informação de qualidade, não aceitar qualquer explicação, por mais que a gente tenha medo. Depois, o Brasil precisa entender que segurança e paz são direitos. A gente precisa pedir investimen­to federal nos Estados, inteligênc­ia para as polícias, prevenção. Se eu fosse fazer um pedido para os próximos anos seria este: que, de fato, o Brasil encarasse o desafio de pensar segurança pública como um direito de todos os cidadãos.

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MAYARA GOMES

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