O Estado de S. Paulo

Ah, o liberalism­o...

- MONICA DE BOLLE MONICA DE BOLLE ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

Não há nada mais libertador do que possuir algum conhecimen­to sobre a história econômica. Ela ajuda a remover amarras ideológica­s, pensamento­s pré-fabricados, noções equivocada­s. Em um mundo em que dogma e fé reinam supremos sobre a ciência e fatos, a história está lá, registrada, para revelar que nenhum modelo econômico atravessa a história intocado pela mudança social. Se atravessa assim é porque o trabalho de reavaliar conceitos em épocas de profundas mudanças não está sendo feito, e isso em nome de algo. É preciso perguntar então: em nome do quê? A resposta depende do país e das circunstân­cias.

Tomemos o caso brasileiro. Reina no País visão pueril do liberalism­o, uma visão vitoriana, digamos. A Inglaterra do século 19 é a referência histórica para parte desse puritanism­o, ainda que os que defendem a visão vitoriana não o façam consciente­mente. A Inglaterra vitoriana é o exemplo mais puro do laissez-faire, da atuação da mão invisível dos mercados, o berço do liberalism­o em sua forma castiça. Ao menos, essa é a maneira como muitos enxergam o país em que a filosofia de Adam Smith, de David Ricardo, de John Stuart Mill foi testada com estrondoso sucesso. A história econômica sustenta a tese? Ou teria a ilha flertado com o protecioni­smo e o nacionalis­mo econômico no alvorecer do liberalism­o?

A história econômica mostra que o que houve foi muito mais do que um flerte. A Inglaterra abraçou o protecioni­smo com vigor por 31 anos, de 1815 a 1846. O enredo é fascinante. Em 1815, a economia britânica se recuperava das guerras napoleônic­as. Durante a guerra, barreiras de todo tipo foram erguidas para evitar que a ilha sucumbisse ao continente; entre elas, uma proteção maciça ao comércio de grãos e outros produtos agrícolas. Tarifas elevadas aplicadas a esses produtos conferiram ganhos aos produtores e donos das terras, já que os preços subiram significat­ivamente. Quando a guerra acabou, a pressão para que o protecioni­smo não fosse eliminado foi enorme e o Partido Conservado­r, representa­nte dos grandes latifundiá­rios, sucumbiu. As Leis dos Cereais entraram em vigor em 1815 e se mantiveram vigentes por três décadas. Durante esse período, o mercado britânico para determinad­os grãos ficou completame­nte fechado, para espanto dos seguidores de Smith e Ricardo. Economias essencialm­ente agrárias e periférica­s, como os EUA e o Zollverein – o conjunto de regiões que viriam a formar a Alemanha, mas que então funcionava­m sob uma união aduaneira – já não podiam exportar para o centro da economia global.

Seguindo o pensamento de Alexander Hamilton e Friedrich List, sabemos que os países emergentes da época não viram outra saída para o próprio desenvolvi­mento senão abandonar o livre-comércio e adotar práticas de substituiç­ão de importaçõe­s para se industrial­izar. Quando o Partido Conservado­r britânico rachou em 1846, produzindo a revogação das Leis dos Cereais, os EUA e as regiões do Zollverein haviam conseguido erguer algumas indústrias internacio­nalmente competitiv­as, como a têxtil. Assim, quando a Inglaterra resolveu pôr fim à sua era protecioni­sta, seu setor de manufatura­s já não tinha mais o monopólio global em diversos produtos. Essa situação haveria de se agravar nas próximas duas décadas, época em que os preços dos grãos e cereais também seriam impactados negativame­nte. Ou seja, não só a indústria britânica estaria em situação menos privilegia­da do que antes da adoção das Leis dos Cereais, como também os setores agrícolas estariam sofrendo com os preços em declínio. Não é surpresa, portanto, que às vésperas da unificação alemã, em 1871, o debate sobre as vantagens do protecioni­smo na terra de David Ricardo estivesse novamente a pleno vapor.

Como qualquer outra filosofia ou pensamento, o liberalism­o deve evoluir e mudar com o passar do tempo

Há várias maneiras de interpreta­r as escolhas do Reino Unido no século 19. Uma delas é afirmar que o protecioni­smo acabou dando impulso à industrial­ização na periferia à época, prejudican­do a Inglaterra, o que é em parte verdade. Contudo, a industrial­ização desses países ocorreria mais cedo ou mais tarde com ou sem as Leis dos Cereais. Outra maneira, mais controvert­ida, é afirmar que a ilha do liberalism­o castiço errou ao abandonar o protecioni­smo agrícola. Afinal, se tivesse mantido as restrições ao comércio teria ao menos preservado uma parte de sua economia. Não tenho lado nem tese nessa história. Conto-a apenas para que os leitores tenham claro que o liberalism­o teórico, sobretudo o puritano, é muito diferente na prática. Conto-a para ilustrar de forma indireta o equívoco cometido por muitos no Brasil de amarrarem-se a ideias sem entender o contexto em que as medidas por elas suscitadas haverão de ter lugar e sem compreende­r que, como qualquer outra filosofia ou pensamento, o liberalism­o deve evoluir e mudar com o passar do tempo.

ECONOMISTA, PESQUISADO­RA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIO­NAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY

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