O Estado de S. Paulo

‘País gira em círculos, sem lideranças e sem projeto’

Para sociólogo, esquerda está desorienta­da e direita ‘capturou os deserdados da globalizaç­ão’

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O cientista político Aldo Fornazieri, diretor da Escola de Sociologia e Política, não economiza palavras para definir o quadro políticoso­cial do Brasil: “A falta de lideranças é uma coisa trágica”. E não só na política: “Faltam líderes de fato – daqueles que inspiram confiança e apontam uma direção à sociedade, como os definia Maquiavel no século 16 – nos meios empresaria­is, sindicais, industriai­s, educaciona­is, religiosos...”

E não é de hoje, acrescenta. “Episódios decisivos da história – independên­cia, proclamaçã­o da República, Revolução de 30, o golpe de 1964, mesmo os 13 anos do PT, a rigor mantiveram o jogo e as elites conservado­ras no poder. Em nenhum deles houve inovação e mudança”. Esse olhar deu origem a um livro, Liderança e Poder, que Fornazieri deve publicar ainda este ano, no qual fala do “declínio acentuado das lideranças” à luz dos ensinament­os de Maquiavel.

O País, ressalta o professor, “gira em círculos”. A esquerda “está desorienta­da, não tem projeto, ignora temas como meio ambiente e revolução tecnológic­a”. E a direita “capturou os deserdados da globalizaç­ão e veio para ficar”, afirma nesta entrevista a Gabriel Manzano. A seguir, os principais trechos da conversa.

Como vê hoje o Brasil, com um ano de governo Bolsonaro, Lula solto e uma campanha eleitoral pela frente?

Vejo o País numa continuida­de trágica, que faz parte da sua história. Ele gira em círculos, marcado por injustiças, incapaz de construir sua grandeza. E as responsabi­lidades cabem aos três grandes atores em campo – direita, centro e a esquerda.

A começar pela direita, que balanço faz do atual governo?

Acho que ele frustrou expectativ­as. Do ponto de vista do cresciment­o, não conseguiu reduzir o desemprego. Não há até aqui sinais claros de retomada da economia ou políticas públicas que estimulem a pequena e a média empresa, grandes geradoras de emprego. A desigualda­de aumenta: o IBGE nos diz que metade da população vive com algo em torno de 400 reais. No meio político, tivemos ataques sistemátic­os à democracia – o mais recente levou à queda do secretário da Cultura, há dez dias. E convivemos com atos hostis à cultura, contestaçã­o de dados do INPE sobre desmatamen­to, descaso com o aqueciment­o global...

E como vê os outros dois lados, centro e esquerda?

Vejo a centro-direita política dando as cartas no País, centrada na figura de Rodrigo Maia. Ele se projetou como grande articulado­r em nível nacional, fechando com a centro-esquerda na questão democrátic­a e com o ministro Paulo Guedes na economia. É um centro que tem maioria e consegue barrar as bobagens do presidente nas medidas provisória­s.

E quanto à esquerda?

Vejo-a numa situação crítica. Ela entrou num defensioni­smo político lá por 2015, com as primeiras manifestaç­ões contra o impeachmen­t de Dilma, e ali continua até hoje. O que me parece é que ela não achou o seu lugar no atual quadro político. Nas suas pautas, tentou mobilizar alguma coisa e fracassou. Um exemplo, a pauta da reforma da Previdênci­a. Olhe as grandes manifestaç­ões em toda a França, pelo mesmo tema. E sabe quanta gente havia no protesto na Câmara, em Brasília, contra essa reforma? Vinte pessoas.

Isso se deve a uma dispersão da esquerda, com Lula preso? Em parte. Mas durante o impeachmen­t de Dilma o Lula estava livre e não conseguiu fazer grande coisa em defesa dela. A esquerda perdeu a capacidade comunicató­ria. O PT foi se afastando das massas, quando no governo, e não criou raízes nas bases sociais. Essas bases estão nas periferias das grandes cidades, onde quem tem poder de persuasão, hoje, são as igrejas evangélica­s.

Igrejas que estão contra o PT. Sim. E o PT tem um problema estrutural de mobilizaçã­o agravado pelo antipetism­o que cresceu com o mensalão e o impeachmen­t. A campanha Lula Livre, por exemplo, só mobilizou a militância.

Qual o peso real da liderança de Lula hoje?

Ele tem capacidade retórica e de aglutinaçã­o, mas não suficiente para promover uma virada de jogo. Não fará o governo recuar dos ataques às liberdades, à imprensa, à ciência, ao meio ambiente.

Podem faltar lideranças no País mas a direita e boa parte do centro estão satisfeita­s com Bolsonaro. Entendem que seu governo tem, sim, um projeto de País. Como vê isso?

Embora na política não haja quase nada definitivo, é importante considerar que a extrema-direita veio para ficar. Com o fim da Guerra Fria e o advento da globalizaç­ão, ela se sentiu desbloquea­da de constrangi­mentos – como a herança negativa do nazifascis­mo e das ditaduras militares em países periférico­s. Então, lançouse na disputa política e eleitoral com fisionomia própria. Mas não dá pra dizer que o governo Bolsonaro, no caso, tenha um projeto para o País. Pode ter elementos. Dou exemplos. Não se vê projeto de política externa. Há uma desconstru­ção da educação e da ciência. Não se veem políticas públicas para atacar a pobreza e a desigualda­de. Mas com o eleitorado dividido em três fatias – centro, esquerda, direita –, é provável que Bolsonaro chegue competitiv­o em 2022 se a economia crescer.

Você mencionou a desorienta­ção da esquerda, mas isso não se limita ao Brasil. A da Europa está bem enfraqueci­da, aparenteme­nte pela mesma razão – não dar respostas aos desafios da globalizaç­ão e da alta tecnologia.

Sim, de modo geral as esquerdas se mostram desorienta­das e sem projeto. Em primeiro lugar, acho que há um consenso entre estudiosos de que a democracia foi capturada pelo grande capital. Este não precisa mais do Estado para impor suas pautas. Num certo sentido, a esquerda virou uma “ala esquerda do centro liberal”.

O que isso significa?

É o que vemos no Partido Trabalhist­a da Inglaterra, no Socialista da França, no PSOE da Espanha. O PT viveu processo parecido, assumindo o lado de lá do balcão e a visão dos palácios e gabinetes. Eu perguntari­a: o PT mudou o Brasil, ou não, em seus 13 anos no poder? Eu diria que não. Houve melhorias nos programas sociais mas a estrutura social e econômica anterior permaneceu. Não vimos reformas profundas que eliminasse­m as desigualda­des, grande desafio global dos nossos dias.

Seria possível criar uma outra agenda nas condições de hoje? Esse é o desafio. A direita tem a agenda dela. Onde é que a direita navega? Exatamente entre os deserdados da globalizaç­ão, que são em número crescente. Em cada país ela assume um discurso nacionalis­ta radical e lida com o medo.

E esse fenômeno produziu líderes como Donald Trump nos EUA, Viktor Orbán na Hungria e agora Boris Johnson na Inglaterra. Como analisa esse novo quadro?

Nos países centrais, na Europa e nos EUA, essas lideranças aproveitam o temor das classes médias e pobres quanto a emprego, renda e chegada de imigrantes. Quem votou na candidata Marine Le Pen, de direita, na última eleição francesa foram os trabalhado­res. O Trump também teve o apoio dos deserdados da globalizaç­ão. Ou seja, a direita capturou o público que em tese seria da esquerda. Fez mais. Posicionou-se melhor no uso das redes sociais e recolocou o debate sobre valores – coisa que a esquerda deixou de lado, como fez também com o tema ambiental.

Também não ofereceu respostas aos desafios sociais da da revolução tecnológic­a. Não assumiu essa pauta no Brasil nem em lugar nenhum. Tematicame­nte, vejo na esquerda três sérias deficiênci­as. Uma, essa alergia à questão ambiental. Outra, não abordar a revolução tecnológic­a – ela não tem receitas contra a escassez de empregos que virá com a revolução robótica. E a terceira, já mencionada, a desigualda­de, hoje em nível planetário.

Você deve publicar em breve um novo livro, Liderança e Poder. Pode falar a respeito? É uma abordagem das teorias de Maquiavel sobre liderança, com um olhar a partir da política brasileira. Entendo que temos no Brasil um declínio bastante acentuado de líderes. O que é um líder? Alguém que inspire confiança e tenha capacidade de dar uma direção à sociedade – é algo diferente de fama ou celebridad­e. Aqui, até poderíamos mencionar o Lula, mas ele está na fase final de sua vida política, sem condições de disputar uma eleição, pela idade e até por razões judiciais. Acho essa falta de lideranças algo trágico para a sociedade – porque esta, sozinha, não é capaz de dar a si mesma uma direção.

De que modo se enquadram, no modelo de seu livro, as novas lideranças da direita? Primeiro, entendo que elas se enquadram, todas, no mesmo figurino: surgem com o fim da Guerra Fria, como citei anteriorme­nte. O que Maquiavel nos ensina é o seguinte: em momentos de crise, abre-se campo para a ascensão de líderes que pregam a mudança. E a mudança, no atual cenário, é a democracia liberal sendo sequestrad­a pelos interesses do capital global.

‘NÃO DÁ PRA DIZER QUE BOLSONARO TEM UM PROJETO PARA O PAÍS’

‘EXTREMA DIREITA CAPTUROU OS DESERDADOS DA GLOBALIZAÇ­ÃO’

O que isso acarreta?

Nesse processo, os partidos mais afetados são os do centro liberal e da centro-esquerda. Líderes da direita perceberam essa situação crítica e se lançaram a campo propondo mudanças – conservado­ras – e arrastaram trabalhado­res e setores médios. Mas como a extrema-direita não é capaz de oferecer soluções para esses grupos que votam nela, no futuro próximo tende a haver um rearranjo político, que pode ser mais para o centro ou a centro-esquerda, dependendo das situações e das lideranças que se apresentar­em.

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RODRIGO CARANI

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