CIA, ESPIÃ E FORNECEDORA
Companhia suíça Crypto faturou milhões negociando com mais de 120 países desde a 2ª Guerra; o que nenhum de seus clientes nunca desconfiou é que ela era de propriedade dos serviços de inteligência dos Estados Unidos e da Alemanha Ocidental
Uma empresa suíça vendeu equipamentos de criptografia a mais de 120 países desde a 2.ª Guerra. Seus clientes nunca desconfiaram que ela era da CIA. Ou seja, eles pagavam a quem os espionava.
Por mais de meio século, governos de todo o mundo confiaram em uma única empresa para manter em segredo as comunicações de espiões, soldados e diplomatas. A Crypto AG conseguiu seu primeiro grande contrato para construir máquinas de criação de códigos para as tropas americanas durante a 2.ª Guerra.
Com o dinheiro, tornou-se a principal fabricante de dispositivos de criptografia, navegando na onda da tecnologia, das engrenagens mecânicas aos circuitos eletrônicos e, finalmente, em softwares e chips de silício. A empresa suíça faturou milhões de dólares vendendo equipamentos para mais de 120 países. Entre seus clientes estavam o Irã, as ditaduras militares da América Latina, os rivais nucleares Índia e Paquistão e até o Vaticano.
Mas o que nenhum de seus clientes jamais soube foi que a Crypto era da CIA, em uma parceria secreta com a inteligência da Alemanha Ocidental. Essas agências de espionagem manipularam os dispositivos da empresa para que pudessem quebrar facilmente os códigos que os países usavam para enviar mensagens criptografadas.
Esse arranjo, um dos segredos mais bem guardados da Guerra Fria, está descrito em uma história confidencial sobre a operação, feita pela própria CIA e obtida pelo Washington Post e pela ZDF, emissora pública alemã, em uma reportagem conjunta.
O relato identifica os oficiais da CIA que dirigiam o programa e os executivos da empresa encarregados de executá-lo. Descreve ainda como os EUA e seus aliados exploraram a credulidade de outras nações, pegando seu dinheiro e roubando seus segredos. A operação, conhecida primeiro pelo codinome “Thesaurus” e, mais tarde, “Rubicon”, está entre as mais audaciosas da história da CIA.
“Foi o golpe de inteligência do século”, conclui o relatório da CIA. “Os governos estrangeiros estavam pagando um bom dinheiro aos EUA e à Alemanha Ocidental pelo privilégio de ter suas comunicações mais secretas lidas por pelo menos dois (e possivelmente até cinco ou seis) países estrangeiros.”
A partir de 1970, a CIA e sua sócia na quebra dos códigos, a Agência de Segurança Nacional
(NSA, na sigla em inglês), controlaram quase todas os aspectos das operações da Crypto. Com seus parceiros alemães, elas decidiram as contratações de pessoal da empresa, projetaram sua tecnologia, sabotaram seus algoritmos e direcionaram suas metas de vendas. Os espiões de EUA e Alemanha Ocidental ficaram só ouvindo.
Malvinas. Eles monitoraram os mulás do Irã durante a crise dos reféns, de 1979, forneceram ao Reino Unido informações sobre as Forças Armadas da Argentina durante a Guerra das Malvinas, acompanharam as campanhas de assassinato de ditadores sul-americanos e flagraram autoridades líbias se parabenizando pelo atentado à bomba em uma discoteca de Berlim, em 1986.
Mas o programa tinha limites. Os principais rivais dos EUA, União Soviética e China, nunca foram clientes da Crypto. Suas suspeitas dos laços da empresa com o Ocidente os protegeram, embora espiões americanos tenham descoberto muitas coisas monitorando interações de outros países com Moscou e Pequim.
Também ocorreram violações de segurança que colocaram a Crypto sob suspeita. Documentos divulgados na década de 70 mostram uma correspondência extensa – e incriminatória – entre um agente da NSA e o fundador da Crypto. Em 1992, a prisão de um vendedor da empresa no Irã, que não havia percebido que estava vendendo equipamentos manipulados, provocou uma “tempestade de publicidade”, segundo a história da CIA.
Mas a verdadeira extensão do relacionamento da empresa com a CIA nunca tinha sido revelada até agora. A agência de espionagem alemã, a BND, começou a considerar que o risco de exposição era grande demais e abandonou a operação no início dos anos 90. Mas a CIA comprou a participação dos alemães e deu continuidade aos trabalhos, explorando todo o potencial de espionagem da Crypto até 2018, quando a agência vendeu os ativos da empresa, segundo antigos e atuais funcionários.
A importância da empresa já não é a mesma em razão da disseminação da tecnologia de criptografia online. Antes território de governos e grandes corporações, a criptografia é hoje tão comum quanto aplicativos para celulares. Mesmo assim, a operação Crypto é relevante para a espionagem moderna. Seu alcance e duração ajudam a explicar como os EUA desenvolveram o apetite insaciável por vigilância global, denunciado por Edward Snowden em 2013.
Também há ecos da Crypto nas suspeitas que envolvem empresas modernas com vínculos com governos estrangeiros, entre elas a desenvolvedora de antivírus russa Kaspersky, um aplicativo de mensagens de texto vinculado aos Emirados Árabes e a gigante chinesa de telecomunicações Huawei.
É difícil expressar o caráter extraordinário dos relatos da CIA e da BND. Arquivos de inteligência sensíveis são periodicamente liberados e divulgados ao público. Mas é extremamente raro, talvez inédito, vislumbrar histórias internas e oficiais sobre toda uma operação secreta. O Post leu todos os documentos, mas a fonte do material insistiu para que apenas alguns trechos fossem publicados.
A CIA e a BND não comentaram o caso, embora autoridades americanas e alemãs não tenham contestado a autenticidade dos documentos. Ambos os lados descrevem a operação como um sucesso. Na década de 80, a Crypto chegou a responder por 40% dos telegramas diplomáticos e outras transmissões de governos, que os analistas da NSA exploraram.
Enquanto isso, a Crypto gerou milhões de dólares em lucros, que a CIA e a BND repartiram e investiram em outras operações. Os produtos da empresa ainda estão em uso em mais de uma dúzia de países e seu letreiro ainda está no topo da antiga sede, perto de Zug, na Suíça.
A empresa foi desmembrada em 2018, liquidada por acionistas cujas identidades estão protegidas pelas leis bizantinas de Liechtenstein, minúsculo país europeu com reputação de sigilo financeiro.
As histórias, que não dizem se a CIA pôs fim a seu envolvimento, carregam os vieses de documentos escritos a partir das perspectivas dos arquitetos da operação. Os documentos evitam questões inquietantes, como o que os EUA sabiam – e o que fizeram – a respeito de países que usaram máquinas da Crypto para planejar assassinatos, campanhas de limpeza étnica e violações de direitos humanos.
As revelações podem fornecer motivos para se revisitar a possibilidade de os EUA terem se encontrado em posição de intervir em atrocidades, ou pelo menos denunciá-las, e de terem optado por não o fazer, para preservar seu acesso a valiosos fluxos de inteligência.