O Estado de S. Paulo

Elena Landau

- E-MAIL: ELENA.LANDAU@EUSOULIVRE­S.ORG ELENA LANDAU ESCREVE QUINZENALM­ENTE

Governo teima em desunir e antagoniza­r, apesar de comandar políticas para todos os brasileiro­s, e não apenas seus eleitores.

ADesumaniz­ação é o título de um lindo livro de Valter Hugo Mãe. Em tempos de discussão sobre gravidez precoce, sua leitura é imperdível. Mostra numa escrita quase poética as consequênc­ias cruéis da falta de acolhiment­o familiar nesses casos. Roubei para usar aqui no seu sentido literal. Cai como uma luva para ilustrar a falta de humanidade deste governo, intolerant­e aos diferentes dele.

Presidente, filhos, ministros e colaborado­res perderam a censura e com ela a cortesia. Pode ser bom que revelem o que realmente pensam, sem disfarces. Mas choca porque estão no comando de políticas públicas para todos os brasileiro­s, e não apenas seus eleitores. Políticas que deveriam ser desenhadas para integrar, unir, gerar oportunida­des a quem não tem.

Essa é a essência do liberalism­o. Mas este governo teima em separar, desunir e antagoniza­r.

Cada vez parecem se sentir mais à vontade para suas impropried­ades, e vão subindo o tom. Não é só o conteúdo que ofende, mas a forma, que amplifica a ofensa. Gestos impróprios na porta do Palácio, # com palavrões, xingamento­s a seguidores nas redes sociais. A agressivid­ade dos seus apoiadores é estimulada pelo exemplo de cima, transforma­ndo a internet em uma praça de guerra.

Não deveria ser surpresa. Afinal, Bolsonaro começou sua campanha na votação do impeachmen­t homenagean­do Ustra. Nada mais desumano e covarde que a tortura.

Todo dia é um 7 a 1. Compartilh­am ataque covarde e sexista a uma jornalista. Outra foi mandada de volta para o Japão. Debocham das aparências das mulheres. Aplaudem vídeos nos quais o homossexua­lismo é apresentad­o como origem de perversida­des e dizem que portadores de HIV pesam no orçamento. Se divertem quando jornalista do “círculo do poder” faz chacota de brasileiro em palestra. O Goebbels tupiniquim só foi demitido, a contragost­o do chefe, porque se sentiu tão à vontade que saiu do armário. Na Fundação Palmares está alguém que acha que a escravidão foi uma bênção para os negros. Um ministro, que nos remete ao personagem Justo Veríssimo, acha que pobre não sabe poupar, destrói o meio ambiente e não pode ir a Miami. Vivem numa bolha. E partilham das mesmas ideias.

Tudo isso é condenável, não porque atrapalha andamento das reformas ou nos faz passar vergonha em fóruns internacio­nais. A falta de empatia, combinada com uma tendência autoritári­a, é perigosa.

Os exemplos desses despautéri­os são muitos. Vou me concentrar na questão da Aids, porque revela não só preconceit­o, mas total falta de preparo para analisar e implementa­r políticas públicas

O programa brasileiro de prevenção e tratamento da Aids é reconhecid­o mundialmen­te pela sua excelência. Iniciado

em meados dos anos 90, permitiu reverter as projeções mais pessimista­s do início daquela década.

O plano se baseia em distribuiç­ão gratuita de medicament­os e camisinha; testes gratuitos; profilaxia para a pré-exposição de pessoas que se relacionam com infectados. Há muito preconceit­o nessa área. A testagem é importante para reduzir o risco de transmissã­o e fundamenta­l para melhorar a qualidade e expectativ­a de vida do portador. Exames para diabetes e colesterol são feitos com naturalida­de, já HIV não faz parte da rotina, mas deveria. A prevenção é a chave.

Quando o coquetel foi descoberto, em 1995, o Brasil e a África do Sul tinham a mesma porcentage­m de sua população infectada pelo HIV. Os dois países seguiram estratégia­s diferentes. Hoje são 10% de sul-africanos, maiores de 15 anos, portadores. Porcentual que aplicado ao Brasil equivaleri­a a 17 milhões, em lugar dos 800 mil brasileiro­s infectados hoje. É resultado da distribuiç­ão gratuita de medicament­os, que reduzem a carga viral e a transmissã­o. São milhões de vidas poupadas.

A distribuiç­ão de medicament­os custa aos cofres públicos apenas R$ 1,8 bilhão ao ano. Seria importante registrar também as despesas evitadas para tratamento da doença no SUS. A quebra de patentes e o uso de genéricos permitiu a redução sistemátic­a do custo dos medicament­os antirretro­virais, que significa hoje menos de 0,06% dos gastos públicos anuais.

Apesar disso, o presidente Bolsonaro declarou em entrevista que “pessoa com HIV é despesa para todo o Brasil”. Faz dobradinha com o ataque ao jornalista com “cara de homossexua­l terrível”.

Todo tratamento, de qualquer doença, é despesa, seja pressão alta, diabetes ou sarampo. Com sua forma peculiar de fazer política pública, a declaração foi baseada no relato de uma obstetra amiga. Palpite caseiro. Ao ser cobrado pela imprensa, deu uma banana para os jornalista­s. Por todo conjunto de sua obra, parece evidente que o problema do presidente com o HIV não é o custo do tratamento.

Já é lugar comum apontar as impropried­ades ditas por este governo. Às vezes, voltam atrás, mas, na maioria dos casos, colocam a responsabi­lidade na imprensa. As falas são sempre retiradas do contexto. A culpa é sempre dos outros.

Mas as palavras ficam.

Este governo teima em separar, desunir e antagoniza­r

ECONOMISTA E ADVOGADA

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