O Estado de S. Paulo

Sonhos amazônicos

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O Brasil, principal guardião da floresta amazônica, tem papel decisivo na transubsta­nciação dos sonhos do papa Francisco para uma “ecologia integral” em realidade.

Quase cinco anos após a publicação da encíclica Laudato si’ sobre a questão socioambie­ntal, o papa Francisco consolidou a posição doutrinal da Igreja na Exortação Querida Amazônia, suscitada pelo Sínodo da Amazônia.

O destino da floresta amazônica tem ressonânci­a universal. Como disse o diretor de comunicaçã­o do Vaticano, Andrea Tornielli, “as dinâmicas que ali se manifestam antecipam desafios já próximos a nós: os efeitos de uma economia globalizad­a e de um sistema financeiro cada vez mais insustentá­vel na vida dos seres humanos e do meio ambiente; a convivênci­a entre povos e culturas profundame­nte diversos; as migrações; a necessidad­e de proteger a criação, que corre o risco de ficar irremediav­elmente ferida”.

Ante esses desafios o papa expôs seus quatro “sonhos” – o social, o cultural, o ecológico e o eclesial – numa progressão sinfônica que busca harmonizar motivos opostos, mas não antagônico­s: a conservaçã­o ambiental e o progresso social; as tradições locais e os valores universais; a indignação com a agressão aos nativos e seu ecossistem­a e o fascínio com os reflexos da beleza do Criador em sua criação.

“Uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres”, já dissera Francisco na

Laudato si’. A nada serve um conservaci­onismo “que se preocupa com o bioma, porém ignora os povos amazônicos”. Nas palavras do seu predecesso­r, Bento XVI, “ao lado da ecologia da natureza, existe uma ecologia que podemos designar ‘humana’, a qual, por sua vez, requer uma ‘ecologia social’.”

O papa denuncia a “falsa mística amazônica” tecnocráti­ca e consumista que vê na floresta um enorme vazio a ser preenchido. “Às operações econômicas, nacionais ou internacio­nais, que danificam a Amazônia e desrespeit­am o direito dos povos nativos ao território e sua demarcação, à autodeterm­inação e ao consentime­nto prévio, há que rotulá-las com o nome devido: injustiça e crime.” Mesmo os missionári­os cristãos, em que pese a sua abnegação na luta pela dignidade dos indígenas, nem sempre estiveram ao lado dos oprimidos, obrigando o pontífice a pedir perdão pelas ofensas da Igreja e pelos crimes cometidos em seu nome desde a chamada conquista da América.

Mas Francisco também deixa claro que o respeito à autonomia dos indígenas não pode significar um mero absenteísm­o. “A identidade e o diálogo não são inimigos. A própria identidade cultural aprofunda-se e enriquece-se no diálogo com os que são diferentes, e o modo autêntico de a conservar não é um isolamento que empobrece.” Por isso o indigenism­o que a Igreja propõe não é “completame­nte fechado, a-histórico, estático, que se negue a toda e qualquer forma de mestiçagem”. No mesmo diapasão, o trabalho missionári­o deve promover conquistas sociais, mas não pode se resumir a elas. A

Igreja não pode ser “mais uma ONG”, mas deve promover uma inculturaç­ão “que nada despreza do bem que já existe nas culturas amazônicas, mas recebe-o e leva-o à plenitude à luz do Evangelho”.

Para tanto, os bispos são chamados a cultivar a espiritual­idade missionári­a, o protagonis­mo dos leigos e novos espaços às mulheres. A respeito da proposta colateral, mas de alto impacto midiático da ordenação de homens casados, o pontífice não se pronunciou. Mesmo que tivesse essa disposição, seria temerário modificar uma disciplina milenar com base num sínodo regional de menos de 200 bispos e meia dúzia de cardeais sem sequer consultar os mais de 5.000 bispos e centenas de cardeais do resto do mundo.

Os sonhos do papa para uma “ecologia integral” acolhem os sonhos socioambie­ntais seculares e os transcende­m rumo a um matrimônio pleno entre o Céu e a Terra através do encontro com Jesus Cristo. O Brasil, principal guardião da floresta amazônica, com a maior população de católicos do mundo, tem um papel decisivo na transubsta­nciação desses sonhos em realidade.

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