O Estado de S. Paulo

Separação de Poderes

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Opresident­e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro João Otávio de Noronha, agiu bem ao acolher pedido da Advocacia-Geral da União (AGU) e cassar uma liminar concedida pela 18.ª Vara Federal do Ceará, posteriorm­ente confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 5.ª Região (TRF-5), que suspendeu a nomeação de Sérgio Camargo para a presidênci­a da Fundação Cultural Palmares, órgão vinculado à Secretaria Especial de Cultura do Ministério do Turismo.

Sérgio Camargo foi indicado para o cargo pelo ex-secretário de Cultura Roberto Alvim, mas em dezembro sua nomeação foi barrada pela Justiça Federal em função de declaraçõe­s no mínimo desastrosa­s que ele fez contra a comunidade negra e seu legado cultural para o País, patrimônio que a Fundação Cultural Palmares tem como missão primordial defender e preservar.

Do extenso rol de disparates do léxico de Sérgio Camargo saíram declaraçõe­s como: “A escravidão foi benéfica para os descendent­es dos negros no Brasil”; “Racismo no Brasil é Nutella”; “Não tem salvação para o movimento negro, tem de ser extinto”; e “O dia da Consciênci­a Negra celebra a escravizaç­ão de mentes negras da esquerda”.

As declaraçõe­s de Camargo provocaram devida indignação em diversas entidades ligadas ao movimento de defesa da cultura afro-brasileira, que o viam como alguém absolutame­nte inadequado para a presidênci­a de um órgão historicam­ente comprometi­do com suas bandeiras. Este também foi o entendimen­to do juiz Emanuel José Matias Guerra, da 18.ª Vara Federal do Ceará, que viu desvio de finalidade na nomeação de Sérgio Camargo. Para o juiz de primeiro grau, as afirmações feitas por Camargo por meio das redes sociais “contrariam frontalmen­te os motivos determinan­tes para a criação daquela instituiçã­o (a Fundação Cultural Palmares) e a põem em sério risco”.

O desembarga­dor federal Fernando Braga Damasceno concordou com o argumento do juiz Matias Guerra e não deu provimento a um recurso da AGU, mantendo a suspensão da posse de Sérgio Camargo. Foi preciso que o caso chegasse ao STJ para que, enfim, a Lei Maior prevaleces­se.

Para o presidente da Corte, João Otávio de Noronha, houve clara e indevida intromissã­o do Poder Judiciário em seara do Poder Executivo. Ele está absolutame­nte certo. Em que pese o teor das declaraçõe­s feitas por Camargo, não cabe ao Judiciário barrar um ato discricion­ário do Executivo se os requisitos legais para validação deste ato estão presentes, o que é o caso. Noutras palavras, à Justiça não é dado tecer juízo de valor sobre as escolhas feitas pelo governo federal quando as leis e a Constituiç­ão não são atacadas.

“O fato de o nomeado terse excedido em manifestaç­ões em redes sociais não autoriza juízo de valor acerca de seus valores éticos e morais ou mesmo de sua competênci­a profission­al, sobretudo quando se sabe das particular­idades que permeiam as manifestaç­ões no citado meio virtual, território de fácil acesso e tido como aparenteme­nte livre, o qual, por isso mesmo, acaba por estimular eventuais excessos dos que ali se confrontam”, diz trecho da decisão do presidente do STJ.

A pretexto de fiscalizar a validade de um ato administra­tivo, as instâncias inferiores da Justiça Federal interferir­am indevidame­nte em outro Poder, este, sim, um flagrante desrespeit­o ao texto constituci­onal. Não são raros os casos em que juízes se arvoram em administra­dores públicos ou legislador­es. A decisão do ministro Noronha há de ser recebida como uma saudável e exemplar exceção, ainda que excepciona­l não devesse ser.

Não se sabe se Sérgio Camargo será confirmado no cargo pela nova chefe da Secretaria Especial de Cultura, Regina Duarte, ela também ainda não confirmada na posição. De qualquer modo, trata-se de uma escolha do governo, que, a rigor, é quem deve responder pelos erros e acertos de seus escolhidos.

A decisão de Noronha é uma exemplar exceção, ainda que excepciona­l não devesse ser

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