O Estado de S. Paulo

Crueldade de Salvini

- EMAIL: GILLES.LAPOUGE@WANADOO.FR / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZ­OU

Matteo Salvini, o homem forte da Itália, chefe da Liga, poderoso partido de extrema-direita, era ministro do Interior do último governo e, como tal, concebeu e aplicou uma cruel política de imigração: fechou os portos italianos sempre que um “barco à deriva”, carregado com centenas de “migrantes” (líbios, africanos, etc.) tentava se refugiar na Europa, longe da morte.

Essa decisão garantiu a fama e o poder político de Salvini. Finalmente, disse a maioria dos italianos, um homem lúcido e corajoso. Em vez de nos cansar com queixas, arrependim­entos e orações, apiedado da tragédia dos migrantes, Salvini ataca a catástrofe pela raiz – e que se danem as almas sensíveis. A Europa está sendo assolada por novas “invasões bárbaras”. Salvini manda esses invasores de volta a seus desertos. E que se danem os sentimento­s do coração.

O problema do coração é que ele é caprichoso. Por um bom tempo, engole as cobras e lagartos que lhe dão de comer os agrimensor­es, os contadores, os técnicos, os sensatos.

Mas, de tempos em tempos, os corações vibram e fazem ouvir sua voz.

Foi o que aconteceu na Itália: o Senado italiano acaba de autorizar que se apresente à justiça um processo contra Matteo Salvini, que quer expurgar a Itália – e toda a Europa – dessas pessoas desterrada­s.

Agora, para a surpresa de todos, o Senado italiano, tão pálido nos dias de glória de Salvini, recupera seu viço, lança fogo e chamas, autoriza um julgamento contra Matteo Salvini, acusado de “sequestro de pessoas”. Que surpresa! O chefe da Liga será processado “por recusar, durante mais de três dias, em julho de 2019, o desembarqu­e de 131 imigrantes na Sicília”.

Os corações estão, portanto, no caminho certo. Mas ainda não venceram. O tribunal estará sob todos os tipos de pressão. Salvini não se dá por derrotado. Imediatame­nte forneceu um argumento a seus seguidores: lembrou que, na época da “caça aos migrantes”, suas iniciativa­s (o fechamento dos portos italianos às embarcaçõe­s de ajuda humanitári­a) foram largamente aplaudidas por todos os ministros, pela maioria dos parlamenta­res e por quase toda a população.

Nenhum observador dos costumes políticos ficará surpreso. Os representa­ntes do povo e o próprio povo são volúveis: um belo discurso, uma mudança na maioria, uma opinião forjada na esquina, e toda essa gente passa de mala e cuia para o campo cuja destruição vinham planejando até o dia anterior.

Então deixemos de lado nossas ilusões. Salvini é um bom orador. Pode reverter a opinião pública num único discurso. E hoje aqueles que o atacam têm muitos pontos fracos. O principal é o seguinte: os mesmos que até ontem aclamaram Salvini por sua coragem e crueldade para com os migrantes hoje o culpam por sua desumanida­de contra os migrantes.

Há muita coisa em jogo. Se ele for levado à justiça, o petulante e talentoso chefe da Liga (quase fascista), o temível Salvini, poderá ser condenado a até 15 anos de prisão. Se for liberado, pelo menos poderemos nos certificar se o coração ainda tem alguns recursos e se continua eficaz.

Os moralistas franceses do século 17 – ou século 18 – tinham um belo ditado: “O coração tem razões que a própria razão desconhece”.

O Senado italiano recuperou o viço e autorizou o julgamento pelo caso dos migrantes à deriva

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GILLES LAPOUGE

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