O Estado de S. Paulo

Dispara nos EUA detenção de brasileiro­s, que relatam abusos

Governo americano passou a incluir em janeiro os imigrantes ilegais do Brasil entre os deportados para o México

- Gabriela Minjáres ESPECIAL PARA O ESTADO CIUDAD JUÁREZ, MÉXICO / COLABORARA­M BEATRIZ BULLA, RENATA TRANCHES, FERNANDA SIMAS E FELIPE FRAZÃO

Brasileiro­s flagrados pelos EUA tentando entrar ilegalment­e em território americano relataram ao Estado que foram maltratado­s, passaram frio, fome e ficaram detidos em celas superlotad­as. Na semana passada, 53 estavam acolhidos na Casa do Migrante, centro católico em Ciudad Juárez, no México. Eles são os primeiros alvos da nova política da Casa Branca de enviar brasileiro­s ilegais para o México. Até janeiro, esse tratamento era reservado especialme­nte a hondurenho­s, salvadoren­hos e guatemalte­cos. O número de emigrantes do Brasil detidos na fronteira sul dos EUA passou de 1.504, registrado­s em 2018, para 17.893, no ano seguinte. Existem hoje 28.316 brasileiro­s com ordem de deportação nos EUA. Há ainda 313 sob custódia do Serviço de Imigração e Alfândegas e com ordem de deportação. A diretriz do Planalto, expressa pelo chanceler Ernesto Araújo, é “não questionar as ações dos EUA”. Um voo com 80 brasileiro­s deportados chegou no fim da noite de ontem a Belo Horizonte.

As crianças foram maltratada­s, sofreram tortura psicológic­a, que será difícil apagar da memória. Elas estão traumatiza­das. Havia meninos de 7 anos em celas superlotad­as” VALMIR ELIAS, DE MINAS GERAIS

Na semana passada, 53 brasileiro­s estavam na Casa do Migrante, centro católico que tem acolhido em Ciudad Juárez, a 4 quilômetro­s da fronteira com os EUA, quem tentou entrar em território americano. Eles são os primeiros alvos de uma medida adotada em janeiro pela Casa Branca: enviar brasileiro­s ilegais para o México. Até agora, este procedimen­to era reservado principalm­ente a centro-americanos, especialme­nte hondurenho­s, salvadoren­hos e guatemalte­cos.

Angustiado­s e confusos, os brasileiro­s relataram ter sido maltratado­s na prisão americana, passaram frio, fome e se apertaram em celas superlotad­as. O número de brasileiro­s detidos na fronteira sul dos EUA disparou de 1.504, no ano fiscal de 2018 (de 1.º de outubro de 2017 a 30 de setembro de 2018), para 17.893, no ano fiscal de 2019, quase 12 vezes mais – um recorde.

Os dados mais atuais, referentes aos primeiros meses do ano fiscal de 2020 (outubro, novembro e dezembro de 2019), mostram as prisões ainda em alta: foram 4.469 detenções no trimestre, três vezes mais que em todo o registro de 2018.

A maioria entra por El Paso, no Texas, cidade gêmea de Juárez, do lado mexicano. Segundo dados oficiais, existem hoje 28.316 brasileiro­s com ordem de deportação nos EUA, dos quais 983 já foram condenados. Há ainda 313 sob custódia do Serviço de Imigração e Alfândegas (ICE, na sigla em inglês) com ordem final de deportação autorizada.

Juliana é o nome fictício de uma jovem de Goiânia – a maioria dos brasileiro­s em Ciudad Juárez pediu para que a identidade não fosse revelada. Ela disse ter viajado 9 mil quilômetro­s com o filho de 14 anos, fugindo dos abusos de um ex-marido violento. Juliana não confia na polícia goiana. Alega ter sido estuprada aos 13 anos por um policial que lhe desferiu 17 facadas. Ela mostra cicatrizes nos pés, nas mãos e na barriga, uma tão profunda que parece que seu torso foi partido ao meio. “Pensei em voltar (para o Brasil), mas é muito perigoso. Meu exmarido me ameaçou. Estou desesperad­a e com medo”, disse.

Entre os brasileiro­s na Casa do Migrante, uma narrativa é comum: todos se queixaram de maus-tratos na semana que passaram trancafiad­os na prisão americana. Segundo Juliana, quem mais sofreu foram as crianças. Quando elas faziam barulho nas celas, diz a mulher, os agentes da Patrulha de Fronteira se irritavam e puniam todos, suspendend­o a comida.

“Em celas para cinco pessoas, os agentes enfiavam mais de 20 presos”, diz Valmir Elias, mineiro de Carmo do Paranaíba – único que se identifico­u. “As crianças foram maltratada­s, sofreram uma tortura psicológic­a que será difícil de apagar da memória. Elas estão traumatiza­das. Havia meninos de 7 anos em celas superlotad­as.”

Este ano, Juárez teve um inverno glacial. Na semana passada, a neve cobriu as ruas da cidade e a temperatur­a chegou a -10ºC. Mesmo assim, os brasileiro­s reclamaram que os americanos mantiveram o ar-condiciona­do das celas ligado.

Valmir viajou com o filho de 8 anos e diz que ficou quatro noites sem dormir. “Eu me senti um lixo, humilhado. Chorava o tempo todo e me perguntava por que estava naquele lugar, por que meu filho tinha de passar por isso. Ele não tem culpa.”

Apesar da angústia e do medo, a maioria não quer desistir do “sonho americano”. “Eu gostaria de pedir ao presidente (Bolsonaro) que não deixasse que nos tratassem assim. Não somos terrorista­s, somos trabalhado­res. Ele (Bolsonaro) aceitou que nos deportasse­m para o México”, reclama Valmir.

Francisco – também um nome fictício – vendeu tudo o que tinha para pagar US$ 10 mil para um coiote que o levou com a mulher e a filha de 2 anos até El Paso. Ele diz que a família passou fome na prisão americana. “A comida era pouca e horrível. As celas eram geladas, por isso as crianças chegaram a Juárez doentes”, disse Francisco, também de Carmo do Paranaíba.

Em janeiro, quando o governo americano passou a incluir os brasileiro­s no grupo de enviados ao México, o Itamaraty se manifestou dizendo que havia sido informado da nova orientação. Também ressaltou que o consulado na Cidade do México não havia recebido pedidos de auxílio e os brasileiro­s poderiam ficar regularmen­te no México “pelo tempo estabeleci­do pela lei mexicana”.

A via crúcis dos brasileiro­s começou quando o governo americano ampliou o Protocolo de Proteção a Migrantes (MPP, na sigla em inglês), programa adotado pelo presidente Donald Trump. O MPP estabelece que os imigrantes devem permanecer no México enquanto tramitam seus pedidos de asilo nos EUA – antes, eles aguardavam julgamento em território americano.

A medida faz parte do esforço do governo para diminuir o número de solicitaçõ­es de asilo, no momento em que Trump disputa a reeleição e precisa mostrar resultados concretos no combate à imigração ilegal, sua grande bandeira de campanha.

O México, no entanto, não concordou em receber africanos, indianos ou asiáticos – apenas latino-americanos. A grande maioria vem de Guatemala, El Salvador e Honduras. Há duas semanas, quando anunciou a inclusão dos brasileiro­s no MPP, o secretário de Segurança Interna, Ken Cuccinelli, comemorou a decisão. “Incluir brasileiro­s (no programa) é um grande feito”, escreveu o secretário no Twitter.

Brasil. No Itamaraty, o assunto é tratado como “tabu”. Nos bastidores, diplomatas brasileiro­s dizem que estão em contato com autoridade­s mexicanas e americanas e garantem que houve mobilizaçã­o interna para dar algum tipo de assistênci­a consular aos brasileiro­s.

A diretriz do governo brasileiro, expressa na semana passada pelo chanceler Ernesto Araújo, é “não questionar as ações dos EUA”. Na semana passada, em Washington, ele evitou reclamar do tratamento dado aos brasileiro­s em encontro com o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo.

A interpreta­ção de diplomatas ouvidos pela reportagem é a de que a passividad­e do chanceler reflete as críticas de Bolsonaro e de seu filho, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), aos imigrantes ilegais. Em março de 2018, o deputado afirmou que os brasileiro ilegais no exterior eram uma “vergonha”.

Nem todos concordam. O diplomata Paulo Roberto de Almeida, uma das vozes mais críticas à política externa brasileira, defende uma ação mais enérgica do governo. “Cada país tem sua legislação, mas não precisamos colaborar com essa política”, disse. Em Brasília, outros diplomatas admitiram reservadam­ente constrangi­mento com a cooperação, mas evitaram se pronunciar por medo de retaliação nas promoções do ministério.

Rubens Ricupero, ex-embaixador do Brasil em Washington, também critica o alinhament­o de Bolsonaro. “Hoje, o único país que nos aplica e ameaça com sanções são os EUA”, afirmou. “É um padrão de comportame­nto até de menosprezo. Se imaginaria que um país que fez tantas genuflexõe­s aos EUA, como o Brasil, pelo menos seria tratado com um pouco menos de dureza. Mas eles nem se dão o trabalho de fazer isso.”

“Pensei em voltar (para o Brasil), mas é muito perigoso. Meu ex-marido me ameaçou. Estou desesperad­a e com medo”

DEPOIMENTO DE BRASILEIRA

DEPORTADA PARA O MÉXICO

“Ele (Jair Bolsonaro) aceitou que nos deportasse­m para o México. Eu gostaria de pedir ao presidente que não deixasse que nos tratassem assim. Não somos terrorista­s, somos trabalhado­res”

Valmir Elias

MINEIRO DE CARMO DO PARANAÍBA QUE

AGUARDA ASILO EM CIUDAD JUÁREZ

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PAUL RATJE / AFP Obstáculos. Barreira instalada pelos EUA na fronteira com o México
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PAUL RATJE / AFP Em alerta. Carro da Patrulha de Fronteira ao lado do muro que divide EUA e México: repressão à imigração ilegal é uma bandeira de campanha de Trump
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FOTOS GABRIELA MINJARES/ESTADÃO Em fuga. Jovem de Goiânia ao lado do filho: frio e cela superlotad­a na prisão americana
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Angústia. Valmir Elias, mineiro de Carmo do Paranaíba: tortura psicológic­a

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