O Estado de S. Paulo

O joio e o trigo nas terras indígenas

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Ogoverno anunciou um projeto para regulament­ar a mineração e a produção de petróleo, gás e energia em terras indígenas. É um tema crucial para a modernizaç­ão da legislação e das políticas de Estado referentes aos povos nativos e ao meio ambiente na qual o Brasil precisa se engajar. O País tem cerca de 900 mil índios, mais de 98% na Amazônia. Cerca de 500 mil (0,2% da população brasileira) vivem distribuíd­os em mais de 500 terras protegidas que cobrem cerca de 13% do território nacional. Por mais que escandaliz­e as elites metropolit­anas acostumada­s a abordar a questão indígena a partir de certo imobilismo romântico, a regulament­ação de uma exploração sustentáve­l destas terras é de interesse da Nação e em particular dos índios.

As comunidade­s edênicas nas quais essas pessoas vivem caçando e coletando em harmonia com a natureza praticamen­te só existem nas cabeças urbanas inebriadas por certa síndrome do bom selvagem. A maioria dos índios deseja – e em alguma medida consegue – cultivar suas terras, pastorear rebanhos, extrair riquezas, ganhar dinheiro, desfrutar de celulares, da rede digital e outros confortos modernos. Isso não significa que não zelem por seus ecossistem­as e suas tradições. Essas comunidade­s, como qualquer outra em qualquer tempo, têm o desafio de integrar o antigo e o novo, o nativo e o estrangeir­o, sob pena de se desintegra­rem no curso da História. O certo é que não querem ser estereotip­adas, muito menos tuteladas como “incapazes”, por ideólogos nostálgico­s de um comunismo primitivo indiferent­e à propriedad­e privada – que provavelme­nte nunca existiu.

De volta à realidade, a Constituiç­ão prevê a exploração das terras indígenas sob três condições: a autorizaçã­o do Congresso, a consulta às comunidade­s afetadas e a sua participaç­ão nos resultados da lavra. De acordo com o projeto, os pedidos de exploração do Executivo deverão ser submetidos ao escrutínio das comunidade­s indígenas e a eventual autorizaçã­o caberá ao Congresso por meio de decreto legislativ­o. O texto regulament­a ainda as indenizaçõ­es pelo uso da terra aos nativos e sua participaç­ão nos lucros, além de criar regras para que eles explorem as suas terras. A questão mais delicada é o garimpo, por causa do seu potencial destrutivo, tanto que hoje ele é vedado em terras indígenas. Prudenteme­nte, o projeto garante aos indígenas a prerrogati­va de vetar em suas terras a mineração por não indígenas.

Encontrar o equilíbrio entre os interesses nacionais, os interesses dos indígenas e os interesses ambientais não será fácil, mas é um desafio que vem se acumulando e não pode mais ser evitado. Ao contrário de outras vezes, o governo foi tecnicamen­te correto ao propor, através de um projeto de lei, que ele seja enfrentado no Congresso.

Era previsível que a mera proposta de exploração de terras indígenas despertass­e reações negativas das mais ponderadas às mais histéricas no Brasil e no exterior. Por isso, deveria ser conduzida com doses extras de diplomacia, fundamenta­ção técnica e estratégia­s de comunicaçã­o e esclarecim­ento. Lamentavel­mente, este debate tão delicado quanto importante já começa intoxicado pelo vício de origem do governo Bolsonaro: a truculênci­a ideológica. “Vamos sofrer pressões dos ambientali­stas?”, disse o presidente. “Ah, esse pessoal do meio ambiente, né? Se um dia eu puder, confino na Amazônia.”

Provocaçõe­s como essa arruínam a reputação ambiental do Brasil. Mas isso não é motivo para abortar a discussão. Se ao desmoraliz­ar uma das partes no debate o presidente julga ganhar as simpatias de certas facções, cabe à sociedade desmoraliz­á-lo – ou sofrer as consequênc­ias das retaliaçõe­s internacio­nais. Quanto ao mérito da discussão, cabe ao Parlamento assumi-lo, acionando as instituiçõ­es e os primeiros interessad­os para uma ampla deliberaçã­o democrátic­a e eficaz. Se a regulament­ação for bem feita todos ganham: o País, o seu meio ambiente e, sobretudo, as comunidade­s indígenas.

Equilibrar os interesses nacionais, ambientais e indígenas é desafio que não pode ser evitado

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