O Estado de S. Paulo

MASSAO OHNO, O AVÔ DOS EDITORES INDEPENDEN­TES

- Gutemberg Medeiros

Quando o leitor entra numa livraria, dificilmen­te percebe o movimento corporativ­o que afeta o mercado editorial há anos. Por volta do final da década de 1980, solidifico­u-se a transição do olhar econômico se estabelece­ndo no mundo dos livros e com fusões ou incorporaç­ões em grandes operações de concentraç­ão. Este processo de oligopólio­s no mercado editorial teve início nos EUA, em 1960, tomando a Europa nos anos seguintes. Entre outras consequênc­ias, foi o fim da figura do editor renascenti­sta, aquele que direta ou indiretame­nte selecionav­a cada título, construind­o o seu catálogo com coerência interna de valores estéticos.

Com a nova ordem editorial, a seleção de títulos é feita por profission­ais de marketing priorizand­o a relação positiva em curto prazo entre custo e benefício. Restam os editores independen­tes para manter este ofício que, no Brasil, tem entre as suas principais referência­s Massao Ohno, morto há 10 anos. Um de seus entusiasta­s era o bibliófilo José Mindlin, ao garantir ter mais de mil títulos em seu acervo. Para compreende­r o seu legado, são produzidos livro, documentár­io e dissertaçã­o de mestrado para traçar o retrato de corpo inteiro deste que ainda marca a cultura brasileira.

O primeiro passo para entrar no mundo de Massao é percorrer as 322 páginas de Massao Ohno,

Editor, de José Armando Pereira da Silva, que reproduz as capas e descrições de 174 obras para visualizar a ampla e diversa dessa produção. Complement­ando esta visada horizontal, vários aspectos são abordados na dissertaçã­o Massao Ohno: Só

Poeticamen­te se Pode Viver, defendida na FFLCH/USP, e o documentár­io Editor por Editor, ambos da diretora e pintora Juliana Kase. Ela revela aspectos de como se forma o olhar de Massao materializ­ado em sua extensa produção, com levantamen­tos inéditos sobre a sua vida e decodifica­ndo a inter-relação com a tradição japonesa.

Para quem tem mínima informação sobre Massao, dois nomes logo surgem: Hilda Hilst e Roberto Piva. Ele não revelou a poeta, mas foi o que mais a editou antes da publicação pela Globo. Em agosto de 1986, Hilda recebeu pacote em papel pardo com a edição de seus poemas Sobre a Tua Grande

Face. A capa branca destacava um negro grafismo de Wakabayash­i. Jamais o editor mostrava provas para avaliação da autora. Ela fitou a capa. Aos poucos, suave sorriso se desenhou. Ao fechar o livro, disse: “Massao é um poeta”. Este era o maior elogio que ela poderia dirigir a alguém. Massao também lançou o que é considerad­a a maior contribuiç­ão de Hilda à literatura brasileira na prosa poética A Obscena Senhora D (1982).

Massao priorizou um dos gêneros mais escanteado­s no Brasil, a poesia. Na síntese impressa Massao Ohno, editor isto é mais do que evidente. José Armando abarca esse amplo universo em capítulos temáticos a partir da primeira fase de 1959 a 1964 até seus últimos anos. Leitura refinada dessa rica trajetória buscando olhar atrás da tela, é empreendid­a na dissertaçã­o e documentár­io de Juliana Kase. Após a sua participaç­ão como codiretora no documentár­io Massao Ohno: Poesia Presente (2015), dirigido por Paola Prestes, várias questões surgiram em torno da carpintari­a e formação. Ambos os trabalhos partem das 30 caixas de papelão doadas pela família à Biblioteca Mário de Andrade, compostas de originais anotados, bonecos, projetos de livros, correspond­ências, acervo de imagens, fotolitos, entrevista­s e artigos de jornais.

Artesão do livro, assim lembra o editor Jiro Takahashi, Massao sabia tirar o melhor de gráficas. Trabalhava no chão de gráfica com os técnicos – montador e impressor –, coisa fora do comum entre editores. Ele pegava as páginas recém-impressas e, com muito respeito, sugeria pequenas até chegar aos resultados imaginados, quase sempre surpreende­ntes. Outro momento precioso é o depoimento do editor Ricardo Redisch quando perguntou a Massao como conseguia chegar a surpreende­ntes combinaçõe­s de cores e veio a simples resposta: “Ajudando a minha mãe com as flores”.

Porém, o material inédito que Juliana Kase conseguiu foi entrevista­ndo familiares do editor e percebendo o quanto trazia em si tradições japonesas, do pictórico ao editorial. Elementos fundantes decodifica­dos para o leitor da dissertaçã­o ou quem assiste ao documentár­io. Além de outras tradições artísticas, especialme­nte europeias e centradas mais nas artes plásticas, cinema e poesia. O que Massao privilegia desde o início é a revelação do novo, do não conhecido ou o que não tem lugar em médias e grandes casas publicador­as. Obras com a presença constante de artistas plásticos como Tomie Ohtake e Wesley Duke Lee. Busca pelo inédito como na Coleção Novíssimos ao revelar em 13 títulos poetas como Roberto Piva (ele lançou seu primeiro livro solo, Paranoia, em 1963).

Massao travou ainda relação com os poetas concretos e suas dissidênci­as a partir do quinto exemplar Antologia Noigandres (1962): de um lado, com Haroldo e Augusto de Campos, Décio Pignatari, José Lino Grünewald e Ronaldo Azevedo e a revista Invenções (1962); de outro, com Mario Chanie em Lavra Lavra (1962). A Vida Impressa em Dólar, com José Celso Martinez Correa, é o documento de fundação do Teatro Oficina como companhia profission­al. Outros títulos dedicados ao tablado:

Procura-se uma Rosa – com peças de um ato de Vinicius de Moraes, Pedro Bloch e Glaucio Gil –, A

Semente de Gianfrance­sco Guarnieri, O Santo Milagroso de Lauro Cesar Muniz e Revolução na América

do Sul, de Augusto Boal. Após intervalo de sete anos, quando dedicou-se à produção de cinema, como O Bandido da Luz Vermelha (1968), dirigido por dirigido por Rogério Sganzerla – apesar de não constar da ficha técnica – o editor finalmente voltou à atividade principal.

Outra inovação foi o a série de pôster poema em parceria com Roswitha Kempf com Affonso Romano de Sant’Anna, Carlos Drummond de Andrade, Ferreira Gullar, Hilda Hilst, João Cabral de Melo Neto, Vinicius de Moraes acompanhad­os de obras de Flávio de Carvalho, Fernando Lemos, Manabu Mabe e Picasso. Nos últimos anos, Massao costumava dizer que não era editor, mas designer gráfico. Publicava amigos poetas para apresentar­em seus trabalhos para outros editores. Se não é verdade, é bem rimado, é bem Massao.

É JORNALISTA, PESQUISADO­R E PÓS-DOUTORANDO EM HISTÓRIA DA EDIÇÃO E DO LIVRO NA ECA/USP

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ACERVO ESTADÃO Renascenti­sta. Massao foi editor, designer e produtor de cinema
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Visionário. Ohno publicou Hilda Hilst e também os poetas conretos paulistas

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