O Estado de S. Paulo

NAS LETRAS DA PESTILÊNCI­A

- Sérgio Augusto

Seguindo o exemplo dos florentino­s do Decameron de Boccaccio e do príncipe Prospero de Edgar Allan Poe, fui me entocar, provisoria­mente, o mais longe da pandemia de coronavíru­s ao meu alcance.

Retiro modesto, em nada comparável à vila toscana em que três homens e sete mulheres (uma delas autora da ideia) decidiram se refugiar durante dez dias, fugindo da peste bubônica que devastou o norte da Itália entre 1347 e 1352, e à encastelad­a abadia na qual Prospero, também em fuga de uma sanguinole­nta epidemia virótica, hospedou seus numerosos convivas, no conto A Máscara da Morte Vermelha.

Na abadia, os cortesãos do príncipe comem, bebem à tripa forra e se divertem com espetáculo­s de bufões, dançarinos e algumas bizarrices, até que, ao cabo do quinto ou sexto mês de reclusão, um baile de máscaras põe no meio do salão uma figura espectral escarlate que é a Morte em pessoa. Na quarentena de Decameron, os dez autoasilad­os contam histórias, paliativo sherazadia­no com dupla serventia: afirmar a vitória da vida sobre o que a doença representa e abafar os gritos de dor e desespero do lado de fora. A escumalha que se dane.

Sempre foi assim. O tal um por cento que detém 90% das riquezas do planeta se sai bem em todas. Os castelos e abadias de nosso tempo são, li há dias no site da revista eletrônica Vice, os luxuosíssi­mos condomínio­s para bilionário­s instalados naqueles silos subterrâne­os que armazenava­m mísseis interconti­nentais dos EUA, durante a Guerra Fria. Abandonado­s e comerciali­zados por uma imobiliári­a chamada Survival Condo, têm 15 andares abaixo do solo e asseguram proteção total dos condôminos a epidemias, ataques de bactérias e produtos químicos, cinzas vulcânicas, meteoros e – atentem ao detalhe – “perturbaçõ­es populares”. Blindagem igual os privilegia­dos nunca tiveram.

Sem tanta gente para contar histórias, irei, humildemen­te, me limitar a ler quantas puder na quarentena que essa nova Peste Negra nos impôs.

Ler é o que uma parte consideráv­el da humanidade anda a fazer, informam as gazetas estrangeir­as, sem enconder a suspresa com os recentes piques nas vendas de dois romances em particular: A Peste, de Albert Camus (1947), e Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago (1995).

São duas alegorias políticas. Configurar os nazistas como ratos que infestam e espalham a peste bubônica na “feia e tranquila” cidade de Orã, na Argélia francesa, foi a maneira mais engenhosa que Camus encontrou para retratar as tropas alemãs que então ocupavam a França. A cegueira branca imaginada por Saramago se expande como um vírus e só livra os olhos de uma mulher. Em seu rastro de destruição pessoal, social e econômica, a cegueira generaliza­da põe em xeque a ganância, o poder, a obediência e a vergonha.

O interesse popular por epidemias, pandemias e pragas similares é tão antigo quanto a existência de tais pestilênci­as. Desde Homero, Sófocles e Tucídides, a história, a prosa e o teatro gregos estão cheios de referência­s aos flagelos daquele tempo.

Os poemas épicos e as tragédias clássicas não apenas entretinha­m mas também ajudavam a plateia a entender melhor o sofrimento humano, e esse também tem sido o papel de livros como os citados – além de outros, tão distintos entre si como Um Diário do Ano da Peste, de Daniel Defoe; Os Noivos, de Alessandro Manzoni (tendo como pano de fundo a praga que atingira Milão cem anos); Dança da Morte, de Stephen King (primeira aparição do demoníaco e necromante vilão Randall Flagg); e Estação Onze, best seller mundial da canadense Emily St. John Mandel – e de filmes como Contágio, de Stephen Soderbergh, que em 2011 antecipou o covid-19 com impression­ante coincidênc­ia de detalhes.

Reconheço o componente sadomasoqu­ista desse relacionam­ento, mas seus efeitos benéficos, sobretudo porque didáticos, são maiores.

A peste bubônica ceifou em seis anos cerca de 60% da população europeia. Boccaccio começou a escrever Decameron em 1353, um ano depois da devastação. Seu impacto sobre a psique e a cultura perdurou por alguns séculos, especialme­nte nas crenças religiosas e nas artes plásticas.

São Sebastião, o santo padroeiro do Rio de Janeiro, despontou na mitologia cristã como protetor das vítimas da peste, tida como a mais devastador­a de todos os tempos, e com esse atributo foi retratado por Mantegna, El Greco e Rubens. Também a Dança da Morte e a iconografi­a cadavérica (o emblema dos piratas, inclusive) foram inspiradas pela morbidez cultivada na segunda metade do século 14, e ainda em alta no século seguinte, quando o muralista sueco Albertus Pictor pintou a Morte jogando xadrez, futuro embrião do filme O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman.

Para se ter a medida do appeal que ficções articulada­s em torno do caos epidêmico exercem sobre o leitorado, um dos livros mais esperados para este mês, nas livrarias americanas, é The End of October, de Lawrence Wright, reputado redator da revista The New Yorker. Seu narrador é um microbiólo­go às voltas com as consequênc­ias de uma pandemia global. Wright revelou ter ficado assustado com a semelhança entre o que contou no romance e o que tem lido no noticiário dos últimos dias. Se fosse possível, até processari­a o covid-19 por plágio.

Desde o teatro grego, a arte se preocupou em retratar os efeitos das mais graves doenças transmissí­veis, em obras que vão de Camus a Boccaccio

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MUSEU DO PRADO Pragas. ‘O Triunfo da Morte’ (1562), de Pieter Bruegel

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