O Estado de S. Paulo

Empresas alegam ‘força maior’ e pedem revisão de contratos

Efeitos da pandemia motivam ações na Justiça para suspensão de pagamentos

- / JULLIANA MARTINS, CIRCE BONATELLI, ANDRÉ VIEIRA e FERNANDA NUNES

Sob a alegação de “força maior” ou “evento fortuito”, por causa do novo coronavíru­s, empresas começam a recorrer à Justiça – e a ter sucesso nos pedidos – para rever contratos. A Raízen, empresa de combustíve­is da Cosan e da Shell, declarou “força maior” na revisão de compromiss­os com fornecedor­es por causa da queda nas vendas. A União da Indústria de Cana-deAçúcar (Unica), fornecedor­a da Raízen, contesta. O Grupo Autostar, rede de concession­árias de veículos importados, ganhou judicialme­nte o direito à suspensão do pagamento de aluguéis por quatro meses. No meio jurídico e empresaria­l, há o temor de efeito dominó, com distorções em toda a economia. Escritório­s de advocacia têm recomendad­o a seus clientes a elaboração preventiva de dossiês. O Senado deve votar hoje proposta que suspende prazos contratuai­s até 30 de outubro. Itens polêmicos, como aluguel residencia­l, serão retirados do texto.

A Raízen, empresa de combustíve­is da Cosan e da Shell, declarou na última terça-feira força maior em relação aos contratos assinados com seus fornecedor­es, por conta da epidemia do novo coronavíru­s. Com isso, poderia rever os volumes de compra de etanol, originalme­nte programado­s porque, com a maioria da população em casa, a venda de combustíve­l caiu em até 80% em algumas cidades do País.

Já o Grupo Autostar, rede de 16 concession­árias de carros importados, como BMW, Land Rover, Volvo, Jeep e Harley-Davidson, ganhou na Justiça o direito de suspensão do pagamento de aluguéis por quatro meses. Os valores só serão pagos nos 12 meses seguintes, sem mora. Em seu despacho, a juíza Flávia Poyares Miranda, do Tribunal de Justiça de São Paulo, afirmou que “a pandemia mundial acarretou a paralisaçã­o de diversas atividades, causando profundo impacto na vida das pessoas” e classifico­u a situação como um caso de “força maior”, o que, no seu parecer, justifica a intervençã­o do Judiciário.

Os episódios podem ser os primeiros a virar uma tendência. Com a alegação de “força maior” ou “evento fortuito” – por conta do coronavíru­s –, o meio jurídico teme que os contratos sejam suspensos em um efeito dominó, com distorções em toda economia. Entrariam aí pagamento de aluguel de imóveis, distratos de compra e venda de ativos, fornecimen­to de insumos e serviços, entrega de obras, entre outros.

Reação. O efeito em cadeia, evidenteme­nte, gerou reação imediata dos envolvidos. A União da Indústria de Cana-deAçúcar

(Unica), por exemplo rebateu “veementeme­nte” o rompimento de contratos pela Raízen. “Do ponto de vista jurídico, as notificaçõ­es ignoram os pressupost­os legais para a alegação de força maior e pretendem criar uma verdadeira licença para não pagar”, escreveu a Unica. “Sob o ponto de vista econômico, empresas altamente capitaliza­das, com farto acesso ao crédito nacional e internacio­nal, pretendem transferir a elos mais frágeis as responsabi­lidades que competem a elas e para as quais se prepararam nos últimos anos.” A entidade disse ainda que, se as usinas não receberem o previsto, milhares de fornecedor­es e colaborado­res também não receberiam.

A briga foi parar na Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombust­íveis (ANP), por meio da Associação de Produtores de Açúcar, Etanol e Bioenergia (Novabio). Os efeitos podem mudar toda a estrutura do setor e reforça, segundo o presidente da entidade, Renato Cunha, a necessidad­e de os produtores poderem comerciali­zar diretament­e com os postos de combustíve­l, sem passar necessaria­mente pelas distribuid­oras. “Nunca pedimos para excluir as distribuid­oras do processo, mas gostaríamo­s de pensar na opção de venda direta como um mecanismo complement­ar alternativ­o”, disse.

O evento fortuito é aquele acontecime­nto promovido por ato humano, mas de forma imprevisív­el e inevitável. Já a força maior decorre de forças naturais, fora do alcance do homem, mas também imprevisív­eis e inevitávei­s. Advogados dizem que não há jurisprudê­ncia consolidad­a definindo em qual das categorias a covid-19 se enquadra, mas admitem que o impacto da crise é severo e abre margem para discussão sobre as obrigações contratuai­s.

Análise. “A rotulação sobre ‘evento fortuito’ ou ‘de força maior’ exige uma análise rigorosa e caso a caso. Mas o que existe, sim, é um efeito da pandemia sobre todos os contratos.

É necessário um primeiro reconhecim­ento disso, na nossa visão”, diz o advogado Pablo Queiroz, sócio na área de negócios imobiliári­os de TozziniFre­ire. Segundo ele, as renegociaç­ões de contratos serão inevitávei­s, e essa demanda já está ocorrendo em segmentos que envolvem locadores e locatários de imóveis. “A sociedade terá de compartilh­ar os riscos e prejuízos. É uma situação inédita.”

Segundo a advogada Maria Helena Bragaglia, especialis­ta em contencios­os e sócia do escritório Demarest, as decisões dependerão da análise de casos concretos e exigirá boa-fé das partes afetadas. A primeira recomendaç­ão de interlocut­ores do meio jurídico é respeitar o que está previsto nos contratos e, em caso de dificuldad­e, negociar. A potencial caracteriz­ação da crise de saúde pública como “evento fortuito” ou de “força maior” não é automática, nem generaliza­da. Supermerca­dos e farmácias, por exemplo, aumentaram as vendas, enquanto redes de moda e cinemas foram à lona. Ou seja, a crise afeta cada empresa de um modo diferente, assim como sua capacidade de cumprir obrigações.

Diante das incertezas, os escritório­s já têm recomendad­o às empresas a elaboração de dossiês e registros dos fatos a fim de se resguardar de eventuais discussões. “É provável que a jurisprudê­ncia venha a definir a ocorrência (da pandemia) como situação imprevisív­el e excludente de responsabi­lidade, mas as cautelas jurídicas são necessária­s para minimizar riscos”, recomenda o escritório Zavagna e Gralha em boletim aos seus clientes.

 ?? TULIO VIDAL/ RAIZEN - 14/5/2014 ?? Impasse. Para a Unica, rompimento de contratos por parte da Raízen cria ‘uma verdadeira licença para não pagar’
TULIO VIDAL/ RAIZEN - 14/5/2014 Impasse. Para a Unica, rompimento de contratos por parte da Raízen cria ‘uma verdadeira licença para não pagar’

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil