O Estado de S. Paulo

Os adversário­s do combate ao coronavíru­s serão triturados pela História.

- Fernando Gabeira

De certa forma, uma epidemia como esta do coronavíru­s já estava prevista por estudiosos. O que não estava ainda no nosso radar era o impacto da ignorância humana em aceitá-la para realizar o combate frontal contra ela.

À pequena capa gordurosa do vírus foram acrescidos os fluidos da ideologia, tornando-o ainda mais perigoso e letal. Agora que aconteceu, constatamo­s que essa reação não era de todo imprevisív­el. Um movimento moderno de descrédito da ciência, do conhecimen­to, da imprensa facilmente desaguaria nesta oposição a uma ululante realidade sanitária.

A eleição de Donald Trump e a de Jair Bolsonaro são um marco destes tempos modernos. Ambos viram o surgimento do coronavíru­s como ameaça a seus governos e passaram aos seguidores a impressão de que todo o debate sobre o tema era manobra de oposição. A emergência do corona transformo­u-se, então, para eles numa guerra cultural contra os inimigos de sempre.

Ao transfigur­ar uma realidade sanitária num confronto político, usaram com naturalida­de sua arma comum, fake news, para vencer a batalha. Nos Estados Unidos, por exemplo, a extrema direita travou uma luta direta contra a principal autoridade sanitária, Anthony S. Fauci, cobrindo-o de ofensas gratuitas.

Preocupado com sua reeleição, Trump tentou corrigir o rumo. Bolsonaro resistiu mais, de forma desagregad­ora. Seguidores usaram a mesma tática de fake news para desacredit­ar as mortes e classifica­r os mensageiro­s da realidade como uma torcida pelo vírus.

Os mais intelectua­lizados entre eles chegaram a afirmar que nos EUA morre mais gente engasgada por ano do que os primeiros milhares de mortos pelo coronavíru­s. Não se detiveram a analisar por que os norte-americanos não constroem, às pressas, hospitais de campanha para socorrer engasgados, muito menos por que não reduzem o ritmo da economia para evitar o contágio entre engasgados.

Bolsonaro liderou uma espécie de uma farsesca revolta da vacina. Em 1904 a população, que vivia em terríveis condições sanitárias, rebelouse contra um governo que queria modernizar e higienizar a cidade e um cientista, Osvaldo Cruz, que queria vaciná-la. Agora um presidente se rebelou contra a orientação científica e grã-finos em carros importados desfilam pelas ruas afirmando que o povo precisa voltar a trabalhar.

Esse espetáculo patético drenou um pouco da nossa energia no combate ao coronavíru­s. Se nos detivermos no urgente debate das medidas sanitárias, há sempre alguém para dizer: por que não combater o Bolsonaro?

Sou dos que pensam que o combate ao vírus é uma prioridade planetária e que os adversário­s desse combate serão triturados pela História.

No mundo real, precisamos aprender com os países que já passaram por uma fase intensa da epidemia. Em todo lugar ficou evidente a necessidad­e de equipament­os de proteção individual para médicos e profission­ais de saúde. É um ponto decisivo. Cerca de 20% dos nossos médicos estão numa faixa de idade que os põe no grupo de risco. Podem ser úteis na telemedici­na, mas não vão ser escalados na linha de frente.

Os vídeos que mostram os profission­ais da Coreia do Sul se vestindo para o trabalho revelam como o equipament­o é necessaria­mente redundante para proteger contra o vírus. Os Estados Unidos já começam a ter problemas nesse campo. Eles vão surgir no Brasil, uma vez que o equipament­o é disputado no mundo inteiro.

Uma das saídas é canalizar parte da solidaried­ade social para fortalecer os profission­ais de saúde. Se não for possível complement­ar a deficiênci­a de equipament­os, ao menos garantir uma infraestru­tura de repouso. Muitos temem voltar para a casa e pôr a família em risco.

Nos primeiros artigos sobre o tema enfatizei a importânci­a dos 220 milhões de smartphone­s. O governo vai usar os telefones para monitorar a população. Isso aumenta nossas chances. Existe uma possibilid­ade, que começa a ser usada também nos EUA, por meio de uma empresa que vende termômetro­s conectados à internet. Conseguem medir a temperatur­a de 160 mil pessoas, mas o potencial é muito maior.

Discutimos no início da pandemia sobre o alcance desses métodos. Pensadores como Yuval Harari temem uma avanço na quebra da privacidad­e, com o controle entrando pela nossa pele. Mas pelo que vi do método que o Brasil usará, a participaç­ão será voluntária. Da mesma forma, o controle de temperatur­a pode ser voluntário.

No fundo, o combate ao coronavíru­s, além da solidaried­ade humana, depende basicament­e de conhecimen­to. Todo esse esforço de consultar o povo é indispensá­vel. Seria mais facilmente vitorioso se complement­ado por testes em massa. Testes para detectar o vírus, testes para detectar anticorpos e potencial imunidade, testes para avaliar o potencial de evolução da doença em cada organismo.

Temos falado muito de ignorância, sobretudo a partir da atuação de Jair Bolsonaro. A frase de Barack Obama é repetida muitas vezes: a ignorância na política ou na vida não é uma virtude. Mais do que nunca, vencer não apenas a ignorância humana, mas também a ignorância específica sobre esse novo coronavíru­s, é a luta principal desse combate planetário.

Se debatemos medidas sanitárias, alguém logo dirá: por que não combater o Bolsonaro?

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