O Estado de S. Paulo

‘Pandemia não pode se tornar uma crise de abastecime­nto’

Professor aposentado da Unicamp defende acordo entre governante­s, apoio a caminhonei­ros e pequenos produtores

- Paulo Beraldo

A pandemia do novo coronavíru­s no Brasil não deve causar uma crise de abastecime­nto no País, que é um dos maiores produtores e exportador­es de alimentos do mundo. No entanto, o aumento de preços dos alimentos vai afetar a população mais pobre, alerta o ex-diretor da Organizaçã­o das Nações Unidas para Alimentaçã­o e Agricultur­a (FAO), José Graziano. “O Brasil não pode permitir que a crise de saúde causada pela pandemia d se alastre e se torne também uma crise de abastecime­nto.”

O professor aposentado da Universida­de Estadual de Campinas (Unicamp) disse que, para evitar esse cenário, é preciso coordenaçã­o entre todos os níveis de governo. Além disso, afirma Graziano, é preciso dar condições para que os caminhonei­ros possam trabalhar e valorizar os pequenos produtores rurais. A seguir, trechos da entrevista de Graziano ao Estado.

• O que mais preocupa no caso brasileiro em relação a uma possível crise de abastecime­nto?

Já havia um desmonte da política de segurança alimentar que tirou o país do Mapa da Fome (em 2014). Esse desmonte vem de muito tempo e foi aprofundad­o no governo Bolsonaro. A primeira medida foi extinguir o Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar), um lugar que juntava trabalhado­r, empresário, sociedade civil, para assessorar a Presidênci­a da República. Era uma interlocuç­ão importante, ainda que tivesse todos os seus problemas. Perdeu-se a ideia de que temos de ter estoques. Se houver um trancament­o de fronteiras, como São Paulo já ameaçou fazer, pode ser disruptivo na cadeia de abastecime­nto. Então, é fundamenta­l manter o sistema da segurança alimentar vivo e ter um grande monitorame­nto de preços e estoques. Hoje, os estoques são todos privados, não se sabe onde estão, quanto há, quanto duram.

• Qual medidas o sr. recomendar­ia para evitar um desabastec­imento?

Estamos nos preparando para uma colheita. É preciso financiar os estoques, financiar a agricultur­a familiar, o comércio de proximidad­e, o pequeno produtor. Tudo isso é fundamenta­l. Não apenas para garantir o abastecime­nto local, mas para evitar uma reação de pânico. O que pode ocorrer de pior nessa hora é a falta de coordenaçã­o e o pânico, de as pessoas quererem comprar tudo nas prateleira­s. Isso acaba exacerband­o os problemas. Manter o acesso a produtos frescos é um grande desafio no momento. E isso precisa ser feito através do comércio de proximidad­e, feiras livres com disciplina­mento de fluxo, venda direta do produtor, com regramento, com mais higiene.

• Quais são os riscos de desabastec­imento no Brasil?

A inseguranç­a alimentar afeta a população mais pobre. No Brasil, não temos um problema de abastecime­nto como tem a África e os países árabes, que dependem de importação de produtos. Pela infraestru­tura precária de saúde, de abastecime­nto, certamente o pior impacto em segurança alimentar será na África. Não acho que seja o caso do Brasil. Aqui, temos um sistema interno que, bem ou mal, dá conta. Essas medidas já deveriam estar em vigor, uma vez que a reclusão e o confinamen­to estão decretados. Os informais já perderam trabalho sem nenhuma compensaçã­o ou indenizaçã­o. O Bolsa Família é o melhor exemplo, (o dinheiro) usado basicament­e para comprar comida, principalm­ente nessas horas.

• Como evitar que haja abusos de preços neste momento?

Temos um elemento novo: o cresciment­o do comércio virtual. E não temos regulações disso. Elas são feitas pelas próprias empresas. Precisamos do Estado presente nisso, com um programa de defesa do consumidor.

• Os caminhonei­ros, que transporta­m grande parte de nossa produção, estão enfrentand­o dificuldad­es para encontrar lugares abertos para comer e dormir. Como resolver isso?

É falta de governo. Dá para fazer um escaloname­nto, daria para informar nos pedágios, por exemplo, com um folheto mostrando quais lugares estarão abertos para comer. Pode fechar o restaurant­e, mas manter a marmita, a quentinha. Até mesmo um drive-thru dá para adaptar facilmente, com coordenaçã­o. Nós dependemos fundamenta­lmente do abastecime­nto rodoviário e já vimos esse filme antes várias vezes. Não podemos correr o risco de uma paralisaçã­o dos caminhonei­ros.

• Como o sr. vê o impacto da crise nas políticas de líderes nacionalis­tas?

O pior que pode acontecer depois dessa crise seria voltarmos aos momentos do passado, quando Estados nacionais adotavam políticas umas diferentes das outras, sem nenhuma coordenaçã­o. Infelizmen­te, o modelo que a gente está vendo na Europa mostrou isso. Na região mais adiantada em termos de coordenaçã­o política, vimos um desastre, sem coordenaçã­o na área da saúde. Temos de encontrar mecanismos aqui na América do Sul de revitaliza­r essa coordenaçã­o. Não vai ser possível fechar fronteiras, isso é só em um curto período de tempo. Precisamos trabalhar para manter o comércio aberto de commoditie­s agrícolas e não contingenc­iar exportaçõe­s.

Alertas

“Hoje, os estoques são privados, não se sabe onde estão, quanto há, o quanto duram”

“Dependemos do abastecime­nto rodoviário. Não podemos correr o risco de uma paralisaçã­o dos caminhonei­ros”

• Qual será o impacto da pandemia nas eleições deste ano? Tenho visto falta de coordenaçã­o de governo. Estão mais preocupado­s em brigar uns com os outros do que em estabelece­r um pacto federativo. A eleição é um complicado­r, mas espero que tenhamos maturidade para não transforma­r essa situação em uma disputa política.

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RAJAT GUPTA/EFE Fome. Distribuiç­ão de alimentos para pobres na Índia, que tem 1,3 bilhão em quarentena
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EDUARDO SOTERAS / FAO - 11/2/2019

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