‘Pandemia não pode se tornar uma crise de abastecimento’
Professor aposentado da Unicamp defende acordo entre governantes, apoio a caminhoneiros e pequenos produtores
A pandemia do novo coronavírus no Brasil não deve causar uma crise de abastecimento no País, que é um dos maiores produtores e exportadores de alimentos do mundo. No entanto, o aumento de preços dos alimentos vai afetar a população mais pobre, alerta o ex-diretor da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), José Graziano. “O Brasil não pode permitir que a crise de saúde causada pela pandemia d se alastre e se torne também uma crise de abastecimento.”
O professor aposentado da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) disse que, para evitar esse cenário, é preciso coordenação entre todos os níveis de governo. Além disso, afirma Graziano, é preciso dar condições para que os caminhoneiros possam trabalhar e valorizar os pequenos produtores rurais. A seguir, trechos da entrevista de Graziano ao Estado.
• O que mais preocupa no caso brasileiro em relação a uma possível crise de abastecimento?
Já havia um desmonte da política de segurança alimentar que tirou o país do Mapa da Fome (em 2014). Esse desmonte vem de muito tempo e foi aprofundado no governo Bolsonaro. A primeira medida foi extinguir o Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar), um lugar que juntava trabalhador, empresário, sociedade civil, para assessorar a Presidência da República. Era uma interlocução importante, ainda que tivesse todos os seus problemas. Perdeu-se a ideia de que temos de ter estoques. Se houver um trancamento de fronteiras, como São Paulo já ameaçou fazer, pode ser disruptivo na cadeia de abastecimento. Então, é fundamental manter o sistema da segurança alimentar vivo e ter um grande monitoramento de preços e estoques. Hoje, os estoques são todos privados, não se sabe onde estão, quanto há, quanto duram.
• Qual medidas o sr. recomendaria para evitar um desabastecimento?
Estamos nos preparando para uma colheita. É preciso financiar os estoques, financiar a agricultura familiar, o comércio de proximidade, o pequeno produtor. Tudo isso é fundamental. Não apenas para garantir o abastecimento local, mas para evitar uma reação de pânico. O que pode ocorrer de pior nessa hora é a falta de coordenação e o pânico, de as pessoas quererem comprar tudo nas prateleiras. Isso acaba exacerbando os problemas. Manter o acesso a produtos frescos é um grande desafio no momento. E isso precisa ser feito através do comércio de proximidade, feiras livres com disciplinamento de fluxo, venda direta do produtor, com regramento, com mais higiene.
• Quais são os riscos de desabastecimento no Brasil?
A insegurança alimentar afeta a população mais pobre. No Brasil, não temos um problema de abastecimento como tem a África e os países árabes, que dependem de importação de produtos. Pela infraestrutura precária de saúde, de abastecimento, certamente o pior impacto em segurança alimentar será na África. Não acho que seja o caso do Brasil. Aqui, temos um sistema interno que, bem ou mal, dá conta. Essas medidas já deveriam estar em vigor, uma vez que a reclusão e o confinamento estão decretados. Os informais já perderam trabalho sem nenhuma compensação ou indenização. O Bolsa Família é o melhor exemplo, (o dinheiro) usado basicamente para comprar comida, principalmente nessas horas.
• Como evitar que haja abusos de preços neste momento?
Temos um elemento novo: o crescimento do comércio virtual. E não temos regulações disso. Elas são feitas pelas próprias empresas. Precisamos do Estado presente nisso, com um programa de defesa do consumidor.
• Os caminhoneiros, que transportam grande parte de nossa produção, estão enfrentando dificuldades para encontrar lugares abertos para comer e dormir. Como resolver isso?
É falta de governo. Dá para fazer um escalonamento, daria para informar nos pedágios, por exemplo, com um folheto mostrando quais lugares estarão abertos para comer. Pode fechar o restaurante, mas manter a marmita, a quentinha. Até mesmo um drive-thru dá para adaptar facilmente, com coordenação. Nós dependemos fundamentalmente do abastecimento rodoviário e já vimos esse filme antes várias vezes. Não podemos correr o risco de uma paralisação dos caminhoneiros.
• Como o sr. vê o impacto da crise nas políticas de líderes nacionalistas?
O pior que pode acontecer depois dessa crise seria voltarmos aos momentos do passado, quando Estados nacionais adotavam políticas umas diferentes das outras, sem nenhuma coordenação. Infelizmente, o modelo que a gente está vendo na Europa mostrou isso. Na região mais adiantada em termos de coordenação política, vimos um desastre, sem coordenação na área da saúde. Temos de encontrar mecanismos aqui na América do Sul de revitalizar essa coordenação. Não vai ser possível fechar fronteiras, isso é só em um curto período de tempo. Precisamos trabalhar para manter o comércio aberto de commodities agrícolas e não contingenciar exportações.
Alertas
“Hoje, os estoques são privados, não se sabe onde estão, quanto há, o quanto duram”
“Dependemos do abastecimento rodoviário. Não podemos correr o risco de uma paralisação dos caminhoneiros”
• Qual será o impacto da pandemia nas eleições deste ano? Tenho visto falta de coordenação de governo. Estão mais preocupados em brigar uns com os outros do que em estabelecer um pacto federativo. A eleição é um complicador, mas espero que tenhamos maturidade para não transformar essa situação em uma disputa política.