O Estado de S. Paulo

O que não será como antes

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Depois que tudo tiver passado, nada será como antes. Será? Na TV, nas redes sociais e nas outras mídias, veem-se os apelos para mudança, radical e definitiva, dos padrões de consumo e de conduta, em direção ao mais simples, à revaloriza­ção do natural, da amizade, da ternura e da compaixão.

Tantas e tantas vezes no passado o mundo atravessou grandes turbulênci­as, até mais dolorosas do que as de agora. A cada período de guerra prolongada, a cada devastação produzida pela peste ou pelo cholera morbus, a cada grande catástrofe, o propósito geral também foi esse, o de que, uma vez enterrados os mortos e cicatrizad­as as feridas, as mudanças seriam inevitávei­s e para sempre.

Alguma coisa pode de fato ter mudado nessas ocasiões, mas, passada a abominação da desolação, tudo o que era antes tendeu a se repetir, como se sabe desde os tempos do Êxodo e da caminhada pelo deserto, quando os hebreus repentinam­ente se esqueceram do valor da liberdade, voltaram a adorar o bezerro de ouro e sentiram saudades das cebolas do Egito.

Mas o esquecimen­to dos propósitos de superação e a volta ao barro de onde viemos não é tudo. Muita coisa vem mudando, um tanto lentamente, mas vem mudando, até para melhor. No tempo da peste, por exemplo, que exterminou metade da população da Europa, nem mesmo os estudiosos sabiam o que era aquilo. Há apenas 116 anos, o Rio esteve entregue à Revolta da Vacina, porque ninguém aceitava o tratamento proposto por Oswaldo Cruz para erradicar a febre amarela. E, hoje, a população corre atrás de vacinas contra a gripe comum. Há cem anos, atacadas pela gripe espanhola, 50 milhões de pessoas morreram no mundo, mais do que na 1.ª Grande Guerra, sem ter como se defender do flagelo. Agora, em questão de semanas, os biólogos sequenciar­am o genoma do novo coronavíru­s.

Independen­temente desses progressos, certos comportame­ntos econômicos que já vinham mudando antes da pandemia devem acentuar a mudança depois de ultrapassa­das as agruras da hora. Um deles tem a ver com o uso do dinheiro. Notas de papel-moeda e moedas de metal propriamen­te dito parecem com seus dias contados, não apenas porque são veículos de transmissã­o de vírus, bactérias e imundícies variadas, não passíveis de ser desinfetad­as, mas porque a substituiç­ão das moedas físicas por moedas digitais já vem ocorrendo. O país mais adiantado nesse movimento é a China, que já avançou na adoção de blockchain, nos pagamentos e nas transferên­cias de recursos por aplicativo­s que dispensam até mesmo a exigência de contas bancárias. Não está longe o dia em que até mesmo esmolas se darão por meio de operações com aplicativo­s.

As compras online são outra área em transforma­ção. O isolamento a que se viu obrigado o consumidor mostrou ao comércio varejista no Brasil e no mundo que as empresas desprepara­das para as vendas online ficaram para trás e agora terão de recuperar o tempo perdido. Não se trata apenas de continuar fisgando o consumidor nas horas de reclusão inevitável, como agora, mas de reduzir substancia­lmente os custos com estocagem e com logística, como estão fazendo as empresas que já têm boa quilometra­gem rodada no sistema, como Magazine Luiza, Lojas Americanas e Ponto Frio.

E há a não novidade do home office, ou seja, do trabalho preferenci­almente em casa. Um bom serviço de internet e acesso aos arquivos e aos sistemas da empresa são quase tudo o que é necessário para dispensar rotineiras viagens de ida e volta aos escritório­s e ou às sedes das empresas, com a vantagem adicional para o empregado de não ter de trabalhar sob o crivo direto do chefe. Mas, convenhamo­s, esse modelo não serve para tudo, não serve para ser adotado no chão de fábrica, nas linhas de montagem, nos canteiros de obras e na maioria dos serviços pessoais. Apenas parcialmen­te, pode funcionar no ensino e no treinament­o de pessoal.

Essas e eventualme­nte outras mudanças que agora se acentuam talvez não definam o mundo novo em formação. Mas dão uma ideia do que poderão vir a ser certas relações de trabalho.

Infelizmen­te, ainda não dá para contar com as tão necessária­s mudanças na área ambiental. Imagens de satélite mostraram como melhoraram as condições atmosféric­as nesses tempos de reclusão e de carros recolhidos às garagens. Mas essa ainda não parece demonstraç­ão capaz de mudar sistemas e de apressar a adoção de políticas destinadas a reverter o aqueciment­o global. O lucro fácil continua tendo a última palavra.

Apesar do avanço da ciência e do aumento da previsibil­idade, uma coisa não muda. Não muda o medo, essa emoção primária que está dentro de cada um de nós.

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BRUNO PONCEANO/ESTADÃO
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