O Estado de S. Paulo

Não é hora de brincar com a sorte

- •✽ ROGÉRIO L. FURQUIM WERNECK

Prestes a ser colhido em cheio por uma pandemia devastador­a, com desdobrame­ntos econômicos e sociais de proporções dramáticas, o País assiste, perplexo, ao desenrolar, no Planalto, de uma extemporân­ea e deprimente ópera-bufa que a cada dois dias volta a alimentar o temor de que, a qualquer momento, o ministro da Saúde venha a ser demitido pelo presidente da República. Por duas falhas imperdoáve­is: ter insistido numa linha clara e bem fundamenta­da de combate à epidemia e, pior, ter mostrado mais sucesso do que deveria no desempenho do cargo.

Essa é só uma das evidências mais gritantes da alarmante desarticul­ação com que o governo federal vem preparando o País para o impacto da crise. Em contraste com países que enfrentam a pandemia em formação cerrada, entre nós a cúpula do governo ainda não conseguiu se mobilizar para levar adiante uma ação nacional concertada de resposta à crise.

Diante da complexida­de do que terá de ser enfrentado, as graves limitações do presidente já não podem mais ser disfarçada­s. Têm sido escancarad­as, a cada dia, à luz do sol. Já não há mais espaço para autoengano. Permito-me reproduzir a seguir o que afirmei sobre Bolsonaro quando pela primeira vez o mencionei em artigo aqui, cinco meses e meio antes das eleições, em 20/4/2018: “A verdade verdadeira é que Bolsonaro, tomado pelo que de fato é, e não por fantasias do que poderia vir a ser, não tem nem estatura nem preparo para ser presidente”. E, tendo dito isso, concluí o artigo com uma frase que se revelou tristement­e premonitór­ia: “A esta altura, em meio ao atoleiro em que foi metido, o País já deveria ter aprendido, de uma vez por todas, quão desastroso pode ser entregar a Presidênci­a da República a uma pessoa patentemen­te desprepara­da para o exercício do cargo”. Mas, no calor da dura batalha que já vem sendo travada, pouco adianta chorar sobre o leite derramado. A questão agora é saber se, apesar da acefalia de que está acometida a Presidênci­a da República, a crise ainda poderá ser enfrentada de forma minimament­e eficaz.

Há quem se anime com a fantástica metamorfos­e que se observou na Casa

Branca nos últimos dias. Bastaram as primeiras informaçõe­s assustador­as sobre o avanço devastador da pandemia em Nova York para que Donald Trump se desvencilh­asse de seu discurso inconseque­nte e populista e, da noite para o dia, se transforma­sse em comandante em chefe das forças que darão combate sem tréguas ao coronavíru­s nos EUA.

Mas é bom ter em conta que, por primitivo que possa parecer, Trump está muito à frente de Bolsonaro na cadeia evolutiva dos animais políticos. E, por mais fixado em Trump que continue a ser, o presidente pode levar mais tempo do que se imagina para mudar sua postura no combate à pandemia.

Enquanto isso, o País não tem melhor alternativ­a do que se mobilizar para manter e reforçar a precária rede de racionalid­ade que, a duras penas, ainda vem dando sustentaçã­o à articulaçã­o de uma resposta consequent­e à crise na esfera federal. Uma rede que vem tendo como esteios ministros de maior estatura, lideranças do Congresso, ministros do Supremo, governador­es, prefeitos de capitais e parte substancia­l da sociedade civil, liderada pela mídia.

Nesse esforço para manter o presidente sob controle, é importante não confundir seus recuos tácitos com mudanças permanente­s e convictas de postura. Basta ter em mente a longa lista de seus ministros e auxiliares que, ao longo dos últimos 16 meses, foram submetidos a processos de fritura. Em quase todos os casos, a demissão foi precedida de lento desgaste, marcado por recuos recorrente­s do presidente, que, a cada vez, pareciam sugerir que as razões para demissão haviam desapareci­do.

Há muito em jogo. Não é hora de brincar com a sorte. É preciso que Bolsonaro entenda a gravidade da situação e perceba com toda clareza que, se continuar conspirand­o contra a articulaçã­o de uma resposta racional à crise, estará fadado a ser confrontad­o com um processo de impeachmen­t.

É alarmante a desarticul­ação com que o governo federal vem preparando o País para o impacto da crise

ECONOMISTA, DOUTOR PELA UNIVERSIDA­DE HARVARD, É PROFESSOR TITULAR DO DEPARTAMEN­TO DE ECONOMIA DA PUC-RIO

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