PARANOIA ELEGANTE
Mangá ‘Dementia 21’ une olhar crítico a respeito dos japoneses com aventuras surreais de uma cuidadora de idosos
Os motivos para se travar guerras e a exploração do trabalho estão presentes em toda a obra do artista japonês Shintaro Kago. Sua produção mais icônica vem de um campo não tão popular, classificada como “ero guro nonsense”, que explora o erotismo grotesco com figuras femininas dilaceradas. Ao pedir licença para essa violência sensual, o mangá Dementia 21, lançado no Brasil pela editora Todavia, é uma exceção no universo de Kago, mesmo que não deixe de tecer críticas à sociedade contemporânea e seus tabus.
Originalmente lançado no Japão entre 2011 e 2013, Dementia
21 tem 37 capítulos reunidos em sete volumes. A primeira edição da Todavia traz 17 capítulos em 280 páginas. Recheado de comicidade, à primeira vista, o mangá está repleto de figuras estranhas como alienígenas, dentaduras ambulantes, gigantes e velhinhos com poderes paranormais. Sem esconder os contornos surreais, Dementia 21 carrega uma forte crítica à sociedade, a partir das relações de trabalho da protagonista, a jovem Yukie Sakai, uma cuidadora de idosos.
Funcionária bem-sucedida da empresa Green Net, Yukie inicia uma jornada que ganha tons de sonho, e pesadelo. Em cada capítulo, ela deve visitar a casa de seus clientes e receber boas avaliações pela prestação de trabalho. Conhecida no ramo pela excelência, ela serve sopas para os velhinhos, ajuda no banho e aplica medicação nos pacientes. O que parece uma atividade simples abre janelas para um universo perturbador e divertido. É a “paranoia elegante”, como já foi chamado o estilo de Kago.
A trajetória do artista japonês nascido em 1969 tem seus pilares apoiados na reinvenção da história de seu próprio país. Em 1999, a Ohta Comics publicou uma coleção de histórias curtas de nome comprido, Shine! Greater East Asia Co-Prosperity, assinada por Kago, que resgata um movimento militar importante na história da Ásia do início do século passado.
Entre os anos 1930 e 1945, os militares do Império do Japão buscaram desenvolver uma campanha para criar um bloco de nações asiáticas, livres das potências ocidentais. O preço? Ser liderado pelos japoneses. O conceito da Esfera de Coprosperidade da Grande Ásia Oriental, que está presente no título da obra de Kago, foi posto em prática pelo primeiro ministro japonês. O objetivo era unir, por meio de forte propaganda imperial, a região de Manchukuo, na Mandchúria, a China e algumas partes do sudeste asiático. Com o tempo, ficou provado que a empreitada dos japoneses serviu de fachada para manter o controle, explorar a região e manipular a economia.
Em Shine!, Kago escancara com traços chocantes os bastidores dessa campanha militar que pretendia beneficiar o Japão. Escrita no mesmo formato das histórias curtas de
Dementia 21 ,a ficção científica de 1999 propõe uma história alternativa à Segunda Guerra Mundial. Nela, as nações combatentes descobrem uma raça de gigantes-mulheres
que podem ser transformadas em armas biomecânicas, como tanques e submarinos.
Mais tarde, o autor retornou a esses seres em Super-Conductive Brains – Parataxis, em que as gigantes, sempre nuas, estão fundidas como máquinas na produção industrial e também presentes na sociedade, servindo como módulos de transporte, e tratadas como animais de estimação pelos humanos.
Essa marca erótico-grotesca da criação de Kago se dissolve, ao menos nos traços, em Dementia 21, exceto pelo mesmo humor cáustico que rodeia a protagonista. Em um dos capítulos, Yukie vai cuidar de uma paciente com um histórico misterioso. Agraciada com poderes mentais enquanto criança, a mulher preferiu reprimir suas habilidades. Com a velhice e o esquecimento, ela vai colocar risco a vida de quem está ao seu redor, e do mundo todo.
Em outra história, Yukie deve participar de um concurso para ser a melhor cuidadora de idosos. Após repetidas derrotas e a pressão da família, a jovem passa a frequentar um curso preparatório. O treinamento inclui carregar idosos por florestas, atravessar rios e enfrentar jacarés, sem abandonar os clientes. Ao fim, a obsessão por cuidar transforma a garota em um monstro cuidador da terceira idade, com vocação de arma nuclear.
A coletânea também debate a realidade japonesa da moradia, em um capítulo sobre um gigantesco complexo para se alocar todos os idosos, e temas delicados como o suicídio, sempre mirando a crítica social. Ao acompanhar um cliente que deseja dar um passeio de carro, os dois seguem para a via exclusiva para idosos. O homem entediado ignora as leis e passa a circular em inúmeras vias: exclusiva para fugitivos, carros funerários, alcoólatras e pessoas que morrem enquanto dirigem.
Kago também quebra a quarta parede em sua trama no capítulo em que Yukie vai cuidar de um autor de quadrinhos independentes. É divertido ver a personagem sofrer duplamente as consequências de um autor que se acha acima do bem e do mal. Presa em uma narrativa que se repete, a jovem precisa entender os rumos do roteiro proposto por esse artista para se ver livre e, quem sabe, virar dona da própria história.
SUA OBRA DE ESTREIA FOI UMA FICÇÃO CIENTÍFICA SOBRE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL