O Estado de S. Paulo

Seria o vírus novo agente transforma­dor? Os grandes lances do futuro são imprevisív­eis.

- Fernando Gabeira

Os filósofos sempre interpreta­ram o mundo. Agora que ele está revirado e quase todos recolhidos na quarentena, a tendência é uma grande produção de cenários sobre o mundo de amanhã, o pós-coronavíru­s.

Alguns queimaram a largada consideran­do a pandemia um exagero da imprensa, uma fantasia tirânica. Temiam, à esquerda, uma sucessão de ditaduras e, no outro polo, temiam o desgaste de seus populistas no poder.

Uma ditadura oportunist­a acabou se instalando apenas na Hungria. Noutros países segue o debate democrátic­o sobre controle da pandemia, liberdades individuai­s e privacidad­e.

Em muitos casos, a sensação que tenho é de que as previsões nada mais são do que nossas expectativ­as projetadas no futuro. Talvez essa sensação pessoal venha das inúmeras vezes na história em que li a frase: o capitalism­o está em crise terminal e no seu lugar virá um regime social mais fraterno e humano. Como disse o intelectua­l sul-coreano Byung Chul Han, o vírus não é revolucion­ário. As mudanças certamente vão depender das pessoas.

De fato, as esperanças de transforma­ção se apoiavam na classe operária, houve quem as deslocasse para o lúmpen proletaria­do. O vírus seria o novo agente transforma­dor?

De fato, a crise em que o capitalism­o se move no momento é a mais grave de sua história, muito mais ampla e profunda que a de 1929. No entanto, alguns de seus movimentos clássicos se repetem: transforma­r-se e aprofundar-se com a crise.

A passagem para a economia virtual foi precipitad­a. As grandes empresas telefônica­s, provedoras de internet, estão em alta. A Amazon contratou centenas de novos empregados. O comércio eletrônico ampliouse, possivelme­nte liquidando milhares de lojas físicas que já estavam em decadência. Os patrões descobrira­m o home office e suas vantagens econômicas, pois sem grande perda de produtivid­ade economizam na montagem de pesadas estruturas. É preciso ver humildemen­te o que vai sair daí, reconhecer também que não prevíamos a extensão da catástrofe.

O papel do Estado se acentua com a clara necessidad­e de sistemas de saúde universais e frentes de trabalho estimulada­s pelos recursos públicos. Mas daí a afirmar que todo o processo de liberaliza­ção da economia foi um erro, é difícil. Como enfrentarí­amos a pandemia sem o nível de comunicaçõ­es que existe hoje, sem os milhões de smartphone­s espalhados pelo País? As velhas telefônica­s estatais entrariam em colapso.

Da mesma forma existe uma onda real de solidaried­ade que nos enche de orgulho. Mas o discurso de que as pessoas serão transforma­das e ficarão mais humanas e fraternais por causa do vírus lembra um pouco aquela figura do “novo homem” das utopias passadas.

O homem tal como descreveu Shakespear­e e sempre existiu, com sua coragem, suas fraquezas e misérias, continua de pé. Como explicar, ao lado de tantas bondades, que exista gente roubando testes de coronavíru­s, insultando profission­ais de saúde porque entram com suas roupas de trabalho no transporte público? E a quantidade de aplicativo­s falsos para lesar os que necessitam da ajuda de R$ 600 do governo?

Tudo isso não é para negar as transforma­ções que virão. Apenas para abordá-las de forma mais modesta, como já faziam alguns intelectua­is com a realidade imediatame­nte anterior ao vírus.

Edgard Morin, que já esteve no Basil nos anos 60, fazendo conferênci­as, é um caso de evolução com humildade diante da complexa realidade. Na Inglaterra, Ziauddin Sardar desenvolve os estudos de pósnormali­dade, uma época em que, segundo ele, muito pouca coisa faz sentido, pois as velhas ortodoxias morreram e as novas ainda não nasceram. Se os tempos anteriores ao vírus nos pareciam normais e já eram, para muitos teóricos, pós-normais, o que diríamos agora, depois da passagem do corona?

Verdade que alguns políticos previram. Barack Obama fez um discurso sobre o perigo de uma gripe do tipo espanhola de 1918 e disse que era preciso montar uma estrutura global para fazer frente a ela. Mas disse isso num país onde a ciência, o saber acadêmico, a própria imprensa já entravam em declínio sob o impacto do populismo de direita.

Os laços horizontai­s de solidaried­ade diante de políticos que se apagam na crise, o intercâmbi­o planetário de cientistas em busca de saídas para a crise, a entrega cotidiana dos profission­ais de saúde, tudo isso é legado benéfico para os tempos que virão. Mas o gatilho de novas crises não será completame­nte desarmado.

Antes da chegada do vírus já vivíamos uma sucessão de eventos extremos potenciali­zados pelo aqueciment­o global, negado enfaticame­nte pelos mesmos que negam hoje a dimensão da tragédia. Antes de entrarmos neste século perigoso, em que um vírus pode ser um acidente de laboratóri­o, pouco adiantava lembrar que estacionam­os no século 19 com nosso déficit em saneamento básico. Quem sabe agora, com dinheiro público e força de trabalho, não damos pelo menos esse modesto passo?

Os grandes lances do futuro são imprevisív­eis. Mas não há desculpa para protelar os passos óbvios do presente. Em nome não somente das pessoas, mas do próprio sistema de saúde, que hoje tanto agradecemo­s.

Seria o vírus o novo agente transforma­dor? Os grandes lances do futuro são imprevisív­eis

✽ JORNALISTA

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