POESIA DA OPRESSÃO
Autora retrata mulher que decorou poemas censurados na Rússia
Novo livro de Noemi Jaffe trata da vida de um casal perseguido por Stalin.
Não fosse por sua mulher, os versos do poeta russo Ossip Mandelstam seriam meras palavras ao vento. Ele os declamava em público, mas nunca transcrevia – essa tarefa cabia a Nadejda. Depois que Ossip morreu em um Gulag, Nadejda, cujo nome apropriadamente significa “esperança” em russo, passou 25 anos memorizando seus poemas até finalmente poder publicá-los. Sua história de amor e resistência inspira O Que Ela Sussurra, o novo livro de Noemi Jaffe, publicado pela Companhia das Letras.
O romance ficcionaliza passagens da vida do casal, como se Nadejda remoesse seu relacionamento ambíguo, entre a paixão e o abuso, e os anos de terror aos quais foram submetidos quando Ossip compôs o debochado poema Epigrama de Stalin e passou a ser perseguido pelo regime soviético. “Eu não deveria dedicar minha vida a memorizar poemas que não serão lidos nem impressos e menos ainda publicados, me arriscando por palavras que não fui eu quem criou”, pensa Nadejda, que, no livro de Jaffe, pondera as contradições de ser uma protofeminista submetida a um relacionamento abusivo com um homem mais velho – Nadejda gostaria de ter sido pintora, mas desistiu de seu sonho por insistência dele. “Acho que ele me queria inteiramente dele, queria que eu me dedicasse a ouvir e escrever seus poemas, a suportar suas infidelidades suportáveis, a estar em casa quando ele chegasse, queria me ter como alguém que pudesse ficar atrás, do lado, por baixo dele.”
Escrito em um caudaloso fluxo de consciência, o romance coloca o leitor diante das angústias de uma Nadejda já velha, desiludida com os rumos de sua vida e amargurada com seu país. “Se poemas fossem capazes de mudar o mundo, não seriam poemas, mas máquinas. Sua força está em sua incapacidade, seu movimento instantâneo de dúvida, um deslocamento da pálpebra, uma ausência despercebida que vem se instalar na alma de forma mais duradoura. Os vencedores sabem disso e por isso nos odeiam e nos temem, porque conhecem o perigo dos mínimos deslocamentos.”
De fato, o perigo evocado pela poesia se manifestou com força máxima na vida de Ossip e Nadejda sob o regime soviético – com algumas semelhanças perturbadoras com o Brasil contemporâneo, como quando ela relata o clima de desconfiança e hostilidade nas ruas, ou que “os alunos eram instruídos a espionar os professores”. O absurdo chega ao ápice quando Stalin telefona para Boris Pasternak (que viria a vencer o Nobel de Literatura) e pergunta se Mandelstam é um bom poeta, como se não valesse a pena oprimi-lo se fosse medíocre. “Você já sabia que, aqui, a
poesia é tão importante quanto o dinheiro, já que o poder se ocupou continuamente em perseguir os poemas e os poetas”, desabafa Nadejda consigo mesma.
Ao longo do romance, versos de Mandelstam se desnudam e Jaffe chega a abrir brechas para novas interpretações. “Qualquer um encontra tudo o que quiser num poema”, pensa Nadejda. “Se quiser entender que ‘Não abafarei as dores, não ficarei mudo,/ Mas traçarei o que quiser traçar./ E agitado o sino do muro nu/ E desperta a quina da inimiga sombra,/ Atrelarei dez bois à voz’ é um libelo contra a Igreja, assim será e então haverá teorias e livros e citações, tudo para mostrar o quanto a poesia de Óssip é, toda ela, um canto de protesto antieclesiástico e, portanto, a favor da Revolução.”
Além dos vários poemas de Mandelstam citados em O Que Ela Sussurra, o leitor brasileiro pode ter um vislumbre de sua obra na recente coletânea O Rumor do Tempo (Editora 34). Dessa forma, é possível experimentar o tempo parar ao ler seus versos, como Nadejda sentia. “Agora mesmo o tempo parou. Ouça. Ele faz um ruído quando para de passar. Eu dizia: ‘O corpo a mim é dado – dele o que devo fazer? / Tão único e tão meu ser?’”
Confira a entrevista completa com a escritora Noemi Jaffe:
O que mais chamou atenção sobre a história de Nadejda e Ossip para ficcionalizar suas vidas? Conheci a história em um livro de ensaios do Joseph Brodsky, fiquei fascinada e fui atrás dos livros dela, Hope Against Hope e
Hope Abandoned, escritos na década de 1970. Ela tinha uma personalidade fascinante, era inteligentíssima, leu muita coisa, tinha uma visão da sociedade extremamente aguçada. Era ao mesmo tempo feminista e machista, porque abriu mão de várias coisas para acompanhar ele, aceitou os adultérios…
O que a vida da Nadejda, essa devoção à obra do marido, diz a respeito da condição feminina?
A Nadejda acreditou na revolução, como muitas outras mulheres e homens, como o próprio marido. O movimento, no início, era bastante feminista, porque a participação das mulheres era igual à dos homens nas fábricas, nas lideranças. A Nadejda tinha uma posição moderna em relação à sociedade, casamento, partilha de bens. Nesse sentido, era revolucionária, uma mulher de posições firmes, mais que as do Ossip às vezes. Mas ela percebeu de que forma a poesia chegava para ele, como se ele fosse uma antena que a recebia. Ele se guiava pelos sons, mais que pelas palavras. Como ela via nele um visionário, resolveu acatar esse lugar que a vida destinou a ela para dar voz a uma pessoa que achava um gênio. O que ele tinha a dizer poeticamente era mais importante do que o que ela tinha a dizer socialmente. Então abriu mão de posturas feministas pelo homem que amava. É interessante como o feminismo pode abrigar esse tipo de coisa, e essas mulheres salvaram parte da cultura russa.
Você vê a literatura como forma de resistência à opressão? Nessas situações dramáticas, a palavra não tem muito poder. A palavra literária dificilmente ultrapassa alguns limites, principalmente do poder, que é o que mais consegue agir para bem ou mal das pessoas. Mesmo assim, ela tem um lugar importante de desafogo, reconhecimento, identificação. Estou escrevendo um diário na quarentena e várias pessoas me falam sobre como ler isso está fazendo bem. Gonçalo Tavares, Maria Brandt e Angélica Freitas também estão fazendo. Acho que a literatura tem esse poder de desbanalizar as coisas e fazer com que você saia do automatismo. Lentamente, muito demoradamente, isso pode até vir a causar algumas mudanças.
Como a poesia pode incomodar tanto um governante?
Stalin amava a literatura. Ele ligou para Pasternak para perguntar se Ossip era bom. Queria saber se valia a pena persegui-lo, porque tinha que ser muito bom pra ser perseguido. Ele era paranoico, como se estivesse competindo com os poetas. Para ele, valia muito que um poeta tivesse falado mal dele. Ele queria se vingar, não admitia que uma pessoa tão valorosa, com uma poesia tão importante, criticasse ele. A cultura é o que mais está entranhado na alma da gente e o que mais revela sobre nossa personalidade. A tentativa de destruir os marcos culturais de uma população é a tentativa de destruir a alma da população. A atitude em relação à cultura mostra o caráter de um governo.