O Estado de S. Paulo

Isso é Bolsonaro

- Alberto Aggio HISTORIADO­R, É PROFESSOR TITULAR DA UNESP

Com recessão à porta, presidente combate as lideranças que ameaçam seu caminho para 2022

Étraço comum das análises sobre o Brasil atual buscar entender o que melhor caracteriz­aria Jair Bolsonaro e seu governo. Bolsonaro é efetivamen­te um personagem singular, minimament­e letrado, um tanto tosco, que numa circunstân­cia especialís­sima chegou à Presidênci­a da República. Não estaria errada essa descrição, mesmo reconhecen­do sua insuficiên­cia.

Dizer que ele representa os militares seria uma generaliza­ção absurda e um desprestíg­io da categoria. Os militares compõem uma camada intelectua­l de relevância incontestá­vel para o Estado brasileiro. Como se sabe, Bolsonaro foi afastado do Exército por indiscipli­na. Tornou-se político profission­al com votos da corporação militar por longos 28 anos. Como parlamenta­r e agora como presidente permanece um defensor das demandas dos militares – vide a reforma da Previdênci­a. É certo que recheou o Ministério com muitos deles, o que não garantiu identidade absoluta entre o presidente e os militares convidados.

Não há novidade também na caracteriz­ação de Bolsonaro como representa­nte da extrema direita. Não apenas ele, mas seus filhos – igualmente políticos profission­ais, vale ressaltar – não escondem isso de ninguém, até mesmo as ligações internacio­nais com essa corrente política. Tal posição, distinta de outras correntes e personalid­ades desse campo, acabou por definir mais precisamen­te Bolsonaro como expressão de uma facção da direita que tem cultivado um comportame­nto fascistiza­nte.

O presidente não abre mão de concentrar em si a narrativa e a estratégia de seu governo. Embora em ambas não haja um programa determinad­o, coerente e sistêmico, que ele faça questão de explicitar. Mas há uma ênfase digna de menção: a persona (o “mito”) sobrepõe-se ao governo e por isso a dimensão pessoal está sempre à frente da institucio­nal, no limite do decoro. A pessoaliza­ção existe, porém, sem nenhum afeto, nem o maneirismo típico da nossa tradição ibero-americana. A Bolsonaro não interessa o savoir-faire da política, as gentilezas com outros atores, mesmo com possíveis aliados. Ele modula seu comportame­nto pelo que entende ser o jogo duro do poder. E para isso adota o método do confronto permanente, pondo sempre em relevo as discrepânc­ias ideológica­s no lugar das soluções para os problemas da Nação. A confrontaç­ão é essencial para sua estratégia de manter o apoio de parcela significat­iva do eleitorado, rumo à reeleição de 2022.

Tudo isso lhe garantiu a iniciativa política até aqui. Mas 2020 começou mal para ele e para todos nós. A divulgação do “pibinho” (1,1%) de 2019, a disparada do dólar, a fuga de investimen­tos e, por fim, o ingresso do Brasil na pandemia do covid-19 alteraram o cenário. A pandemia jogou Bolsonaro nas cordas, fazendo-o perder a iniciativa política. Em poucos dias deu mostras de faltar-lhe o chão e de que sua estratégia maior poderia estar comprometi­da.

Desde então as ações do presidente visam à recuperaçã­o da iniciativa perdida. Com parte da sua equipe contaminad­a pelo vírus, Bolsonaro lançou-se numa escalada desesperad­a: não hesitou em cumpriment­ar os poucos manifestan­tes que pediam o fechamento do Congresso e do STF. Em seguida, com declaraçõe­s estapafúrd­ias, atacou os governador­es que determinar­am o isolamento social para conter o avanço da epidemia. Essa atitude produziu uma fratura na estrutura federativa do País, criando embate institucio­nal, desorienta­ção política, além de complicar o combate à pandemia.

Mesmo na defensiva, Bolsonaro tenta manter a opção por uma “guerra de movimento” definida desde a campanha e a posse, cujo objetivo é destruir a democracia da Carta Constituci­onal de 1988 e implantar um regime iliberal no Brasil. Essa espécie de “revolução reacionári­a” levada em fogo brando (sem violência aguda, até o momento) não pode parar até as eleições de 2022. É nela que Bolsonaro imagina consolidar sua legitimida­de e impor ao País uma “nova hegemonia”, não mais com os valores e ideias da “esquerda”. Para ele 2022 é o turning point.

Mas até lá haverá muita turbulênci­a. O certo é que, para confrontar o frágil reformismo liberal-democrátic­o que marcou a trajetória do País desde o fim da ditadura, Bolsonaro não cederá à “guerra de posições”. Em sua avaliação, esse é um ambiente hostil. No limite, poderia fazê-lo, mas imagina que estaria compactuan­do com um modelo que, segundo ele, marcou os governos dos presidente­s que o antecedera­m, com custos e problemas que não saberia gerenciar.

Diante da pandemia, Bolsonaro age com mão pesada: escanteia governador­es e prefeitos, desafia orientaçõe­s epidemioló­gicas, desestrutu­ra a federação e tensiona ao limite a relação com o Congresso. Mas não ganha nenhuma posição. Busca resgatar sua “guerra de movimento” e colocar nas ruas os que o apoiam incondicio­nalmente, pouco se importando em ver o País à beira da conflagraç­ão.

Com a recessão às portas, o que pode compromete­r sua reeleição, Bolsonaro visa a combater as lideranças que ameaçam seu caminho rumo a 2022. Isso é Bolsonaro.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil