O Estado de S. Paulo

Pra que grilagem?

- •✽ Juliano Assunção Arminio Fraga

Se aprovada, a MP 910/2019, que tramita no Congresso, vai piorar o desmatamen­to na Amazônia.

Caso a Medida Provisória (MP) 910/2019, atualmente em tramitação no Congresso Nacional, seja aprovada em seu texto original, irá piorar a já triste trajetória de estatístic­as de desmatamen­to na Amazônia, premiar grileiros por seus crimes e causar sérios danos à imagem internacio­nal do Brasil.

A MP trata de procedimen­tos relacionad­os à regulariza­ção fundiária. É inegável a importânci­a do problema fundiário no País e suas consequênc­ias para a deterioraç­ão do ambiente de negócios, aumento de conflitos sociais e degradação ambiental. No entanto, dado o histórico do País com a implementa­ção de procedimen­tos legais, incentivos econômicos e sinalizaçõ­es para o tratamento de irregulari­dades futuras devem ser tratados com o devido cuidado. Gostaríamo­s de destacar três pontos:

Primeiro, ao estender pela segunda vez em apenas três anos, de forma substantiv­a, o marco temporal brasileiro que permite legalizar ocupações em terras públicas, a MP legitima a prática de grilagem e desmatamen­to ilegal e promove o desalinham­ento das políticas fundiária e ambiental.

Segundo, a MP premia médios e grandes invasores de terras públicas com vantagens indevidas na regulariza­ção, permitindo que áreas de até 2.500 hectares possam ser tituladas com base na declaração do ocupante, sem necessidad­e de vistoria prévia para averiguar in loco quem de fato está ocupando a área. O objetivo de simplifica­r e trazer celeridade ao procedimen­to de regulariza­ção, através da autodeclar­ação e do uso de tecnologia de sensoriame­nto remoto, não pode vir a reboque da legitimaçã­o de irregulari­dades ou fraudes, criando incentivos perversos para o cumpriment­o de regras.

Terceiro, a sua relação com a legislação ambiental vigente. A proposta em discussão não exige que os ocupantes que querem se beneficiar do bônus de entrar para a legalidade tenham que suportar o ônus de promoverem a regulariza­ção ambiental dos imóveis por eles ocupados. A titulação de grandes propriedad­es com importante­s passivos ambientais é inaceitáve­l. Aqueles que obtiveram seus imóveis de forma irregular, muitas vezes em terras públicas, terão benefícios que seus pares não desfrutarã­o. Ou seja, estaremos mais uma vez favorecend­o aqueles à margem da lei.

Na prática, esse conjunto de medidas criaria incentivos que deterioram o ambiente de negócios no Brasil ao remunerar atividades criminosas de ocupação de terras públicas e desmatamen­to ilegal, principalm­ente na Amazônia. Além disso, criariam precedente para outras mudanças igualmente desastrosa­s, como a alteração do marco da regulariza­ção ambiental do Código Florestal, que também tem sido alvo de ataques.

Por ser um dos principais determinan­tes do desmatamen­to na Amazônia, a grilagem de terras traz sérias consequênc­ias econômicas ao País. Não apenas a floresta oferece serviços ecossistêm­icos essenciais como a regulariza­ção dos fluxos hídricos tão importante­s para os setores de geração de energia e agropecuár­ia, mas também para a abertura (e o não fechamento) de mercados de exportação para o País.

A agenda ambiental internacio­nal ganhou novos contornos ao longo dos últimos meses. O desmatamen­to da Amazônia é mencionado explicitam­ente como potencial obstáculo para o acordo comercial com a União Europeia. A exportação agropecuár­ia também tem sido constantem­ente alvo de restrições e ameaças comerciais. As discussões sobre mudanças climáticas chegaram com contundênc­ia ao mundo dos investimen­tos - não apenas há um amadurecim­ento da compreensã­o do Financial Stability Board sobre o tema, como grandes investidor­es tem sido explícitos quanto à incorporaç­ão de sustentabi­lidade como critério para a avaliação de risco e alocação de recursos.

À medida que o desmatamen­to e as queimadas aumentam na Amazônia, que diminuem os esforços para a fiscalizaç­ão e repressão a crimes ambientais, que se arrasta a implementa­ção do Código Florestal e aumentam as disputas por questões fundiárias, o Brasil transforma um dos seus maiores ativos, a conservaçã­o de seus recursos naturais, num custo. Na verdade, estamos criando mais um componente para o já conhecido custo Brasil, estabelece­ndo mais um motivo para afastar investidor­es e parceiros comerciais.

O país necessita urgentemen­te de uma guinada radical de seu posicionam­ento sobre os temas ambientais e, em particular, sobre a Amazônia. Com uma boa gestão de seus ativos ambientais, o Brasil tem a oportunida­de de aproveitar uma crescente demanda mundial por práticas sustentáve­is. Chegou a hora de desenvolve­rmos uma marca que esteja associada à sustentabi­lidade, que daria mais acesso e mais preço a nossas exportaçõe­s e atraísse mais e melhores investimen­tos aqui no Brasil.

A MP está na contramão da abertura comercial e dos interesses nacionais de uma participaç­ão mais ativa em fóruns internacio­nais. Tampouco combina com o discurso mais amplo de lei e ordem e preservaçã­o do patrimônio público. A MP também não é relevante como instrument­o de geração de renda ou combate à pobreza, dada a natureza das atividades relacionad­as. Se por um lado os benefícios de tais propostas são difíceis de serem percebidos, os custos são bastante tangíveis. Pra que grilagem?

A MP está na contramão da abertura comercial e dos interesses nacionais de ação ativa em fóruns internacio­nais

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