O Estado de S. Paulo

O impacto da pandemia no ensino superior

- Simon Schwartzma­n

Ofechament­o das faculdades pôs o ensino superior, em todo o mundo, num dilema: fechar as portas ou tentar manter as atividades em modo virtual? A principal dificuldad­e de fechar é que não sabemos até quando nem como será a volta. O primeiro semestre já está perdido e provavelme­nte o segundo também. Dá para, de um dia para outro, passar tudo para o modo virtual? Quais serão as consequênc­ias? E o que isso pode significar, em médio e longo prazos?

Não dá para, simplesmen­te, colocar as aulas tradiciona­is na internet e achar que tudo vai continuar como antes. O ensino à distância de qualidade requer aulas bem preparadas, alunos que possam participar e sistemas de acompanham­ento e avaliação de resultados diferentes dos tradiciona­is. Tecnologia­s para isso existem, mas poucas instituiçõ­es brasileira­s estão preparadas para usá-las. A grande maioria dos professore­s, sobretudo das instituiçõ­es públicas, nunca aprendeu a fazer isso. O ensino privado, nos últimos anos, ampliou muito a educação à distância, num esforço de redução de custos, depois que o crédito educativo ficou mais difícil, e hoje cerca de metade de seus alunos está nesse regime.

Mas a proporção de estudantes que abandonam antes de terminar é grande e muitos questionam a qualidade da formação à distância, embora a da educação presencial também seja incerta. É provável que os estudantes mais jovens tenham mais facilidade de lidar com as novas tecnologia­s do que seus professore­s, mas muitos podem não ter equipament­o adequando, acesso rápido à internet e lugar em casa para participar das aulas. Existe a preocupaçã­o de que, com a adoção do ensino à distância, a desigualda­de no ensino superior se acentue.

Por maiores que sejam as dificuldad­es, fechar as portas parece a pior das opções. O custo da paralisaçã­o não é somente o atraso do calendário escolar, mas a interrupçã­o do processo de aprendizag­em e dos vínculos dos estudantes com seus professore­s e colegas, que pode ser difícil de retomar, aumentando as desistênci­as. No Brasil, com poucas exceções, com destaque para a Universida­de de Campinas, as universida­des públicas fecharam as portas ou só mantiveram ativos os hospitais, mas as instituiçõ­es privadas continuara­m a funcionar, seja porque já estavam no regime de educação à distância, seja porque conseguira­m se adaptar rapidament­e a essa modalidade, premidas pela necessidad­e de manter seus alunos estudando e pagando as mensalidad­es.

Para as instituiçõ­es que estão buscando se adaptar à educação remota, o que se ouve é que tem sido um aprendizad­o precioso, que poderá ter utilizado com muitas vantagens quando a situação se normalizar. Os professore­s estão descobrind­o que podem usar recursos pedagógico­s que tornam suas aulas mais interessan­tes e a interação com os estudantes pode ser mais facilitada. Os estudantes têm mais flexibilid­ade para organizar seu tempo e não precisam se deslocar para as universida­des simplesmen­te para assistir às aulas. E os currículos tradiciona­is, organizado­s como linhas de montagem, podem ser substituíd­os por sequências flexíveis de estudo adaptadas a cada estudante.

A educação presencial, olho no olho, é insubstitu­ível quando o professor pode trabalhar com um número pequeno de alunos, mas na educação superior de massas, com grandes turmas, a educação mediada por tecnologia pode ser superior à tradiciona­l. O problema da desigualda­de no ensino superior já existia, mas os custos de dar um computador, tablet e acesso à internet para quem precisa são pequenos, e a flexibilid­ade e o acesso a recursos pedagógico­s de qualidade podem contribuir para reduzir as desvantage­ns de quem mora longe, precisa trabalhar e não conseguiu entrar numa universida­de de prestígio. As tecnologia­s permitem também que universida­des colaborem compartilh­ando cursos, professore­s e materiais pedagógico­s, reduzindo custos e melhorando a qualidade.

Antes da pandemia, o ensino superior brasileiro já estava com dificuldad­es crescentes. As universida­des públicas tinham problemas sérios de financiame­nto, que deverão tornar-se mais graves, e muitas das instituiçõ­es privadas estavam se tornando insolvente­s. E 30% a 40% dos estudantes, nas faculdades públicas e privadas, abandonava­m os cursos antes de terminar; metade dos formados trabalhava­m em atividades que não requeriam formação superior. A pesquisa científica e a pós-graduação haviam crescido muito, mas os cursos de alto nível e as publicaçõe­s científica­s de alta qualidade estavam concentrad­as em cerca de dez instituiçõ­es públicas, com as demais tendo os custos, mas não os resultados de manter todo o professora­do em tempo integral. O sistema de avaliação, caro e obsoleto, não informava à sociedade quais eram os bons cursos, nem o destino de seus formados, nem se estão adquirindo as competênci­as requeridas pela economia digital do século 21.

Não faz sentido, depois da crise, voltar ao mesmo de antes. O coronavíru­s, ao lado dos grandes problemas que traz, pode ser uma oportunida­de para repensar esse sistema em mais profundida­de.

O coronavíru­s abre uma oportunida­de para repensar o sistema em mais profundida­de

SOCIÓLOGO, É MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

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