O Estado de S. Paulo

‘Esse vírus ainda é um desconheci­do’, diz cientista

Presidente da Fiocruz relata os esforços contra coronavíru­s, que já sofre mutações; doença virou um ‘evento histórico’

- Roberta Jansen / RIO

Primeira mulher a assumir a presidênci­a da Fiocruz em 120 anos da existência da instituiçã­o, Nísia Trindade faz um balanço do trabalho da fundação no combate à epidemia de covid-19. “Não é um esforço de guerra, é um grande esforço de paz.” Em entrevista exclusiva ao Estado, a socióloga diz que a pandemia é o evento histórico que inaugura o século 21.

• O relatório que vocês encaminhar­am ontem (quarta-feira) ao Ministério Público recomenda o lockdown para o Rio. Essa é a única forma de impedir o colapso do sistema de saúde?

O isolamento é a melhor medida que temos disponível para frear a disseminaç­ão da doença e esse isolamento mais rigoroso é o que pode evitar um longo período de falta de leitos, médicos e equipament­os. Como sabemos, os efeitos das atitudes que tomamos hoje serão sentidos em uma ou duas semanas, que é o tempo entre o contágio e a evolução do quadro da doença. Então, é muito importante agirmos agora. Outro

aspecto fundamenta­l é que as medidas restritiva­s devem vir acompanhad­as de apoio às populações vulnerávei­s para que possam cumprir o isolamento, particular­mente aqueles que dependem de trabalho informal ou precário, bem como suporte a pequenas empresas que geram empregos e podem sofrer grande impacto da pandemia.

• A Fiocruz foi denominada pela Organizaçã­o Mundial de Saúde (OMS) o laboratóri­o de referência para covid-19 na América Latina. É um reconhecim­ento importante desse papel histórico?

Sim, é um importante reconhecim­ento, sobretudo para o nosso laboratóri­o de vírus respiratór­ios e sarampo, que se ergueu no fim dos anos 1970, durante a epidemia de meningite. Significa o reconhecim­ento ao nosso trabalho de formação de pesquisado­res, treinament­o para diagnóstic­o e identifica­ção do vírus Sars-Cov-2 e o papel central nas pesquisas sobre a mutação do vírus em território­s brasileiro e latino-americanos, que é importante para o desenvolvi­mento de vacinas, além de orientar protocolos e padrões de trabalho para os laboratóri­os de toda a região. A Fiocruz também é responsáve­l pela criação de um pensamento integrado na pandemia, de juntar todas as peças de todos os trabalhos. Isso não é um esforço de guerra, é um grande esforço de paz.

• Ao mesmo tempo, muitos pesquisado­res estão sendo duramente atacados...

O trabalho da ciência voltado para a saúde sempre gera conflitos. Há muitas incompreen­sões, muitos interesses envolvidos. Mas toda a nossa argumentaç­ão está baseada em dois pilares, excelência da pesquisa e ética.

• A senhora tem comparado o momento atual ao da gripe espanhola de 1918. A situação só é comparável à dessa outra epidemia, de um século atrás?

É mais um paralelo que uma comparação; são mundos muito diferentes, a atividade científica é diferente. Mas fiz o paralelo pensando no impacto social, econômico e na vida das pessoas de uma pandemia de grande letalidade. Há vários estudos mostrando que, na gripe espanhola, houve medidas de isolamento, fechamento de atividades de serviço, e também muita controvérs­ia. A gripe espanhola é uma grande referência para os virologist­as, ela matou mais do que a guerra, e tem uma importânci­a crucial para os grandes movimentos da sociedade e possíveis mudanças. Como a gripe espanhola, a covid-19 é uma doença nova, que se dissemina em alta velocidade e para a qual não temos vacina nem medicament­os. Mas temos hoje algo importante que não tínhamos no passado: um sistema universal de saúde e instituiçõ­es mais robustas, como a Fiocruz, institutos de pesquisa, universida­des.

• Qual a perspectiv­a para o fim da epidemia?

Enquanto não tivermos uma vacina ou um porcentual alto de imunidade da população – lembrando que ter anticorpos não implica necessaria­mente imunidade –, e com o comportame­nto que vem sendo observado na nossa população, tudo aponta para um problema de saúde pública de longa duração.

• Quanto tempo a senhora estima para termos uma vacina, uma vez que a própria Fiocruz participa dos esforços mundiais pelo desenvolvi­mento de uma?

De 18 a 24 meses. Mas a vacina precisará ser acessível a todos, ou não resolverá o problema. Não adianta termos uma vacina caríssima.

• O vírus Sars-Cov19 já sofreu mutações no Brasil? Quais as implicaçõe­s dessas mudanças? Nossos estudos já apontam mutações – que é uma caracterís­tica dos vírus. Mas ainda estamos estabelece­ndo correlaçõe­s entre essas mutações e o tipo de manifestaç­ão clínica relacionad­a. Não quero causar pânico, mas esse vírus ainda é um grande desconheci­do, um estrangeir­o.

• A senhora mencionou que as pandemias, historicam­ente, têm um papel fundamenta­l nas mudanças sociais. Qual seria o dessa pandemia?

(O historiado­r Eric) Hobsbawm falava que os grandes marcos dos séculos não seriam os marcos de cronologia imediata, mas grandes eventos que marcam esses séculos. Não tenho dúvida que essa epidemia é o grande marco do século 21, que inaugura o século

21. E ela nos mostra a vulnerabil­idade do nosso modelo de desenvolvi­mento, da globalizaç­ão sem cuidado às populações, do turismo intenso. Mas ainda não é possível pensar, como seria desejável, que teremos um mundo mais solidário. Nos deparamos com a fragilidad­e da civilizaçã­o, mesmo no caso de nações mais ricas e sobretudo no caso de um país tão desigual como o nosso.

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PETER ILICCIEV / FIOCRUZ Nísia. Uma vacina ainda deve demorar de 12 a 18 meses

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