O Estado de S. Paulo

Quando um homem se sente traído

- Ignácio de Loyola Brandão ESCREVE ÀS SEXTAS-FEIRAS

Nessa quarentena, tem gente pirando. Eu mesmo tenho feito besteiras que me preocupam

Lembrando de Nirlando Beirão, a pessoa mais gentil que conheci na vida e cujo texto fará falta na imprensa e na literatura. Agora a morte está vindo de batelada. Juntos, o músico Aldir Blanc e o ator Flávio Migliaccio

Todos nós, diariament­e, ligamos para amigos para saber como estão de saúde e suportando a quarentena. Uma dessas ligações foi para Humberto, amigo que faz vídeos de todos os gêneros, alertando que um dia assombrarã­o. Não sei quem, mas ele jura que assombrarã­o. Tomara sobreviva, quero ser assombrado.

“Você está bem, Beto? Resistindo?”

“Bem? Bem mal, isso sim! Faz três dias que minha mulher me ignora”. “Está sendo traído?”

“Não sei se chega a isso, mas agora pareço não existir. Dói.”

“Celeste tem um caso? Não me diga. Vocês são vistos como o casal mais apaixonado, fiel. Loucos um pelo outro. Não estou entendendo.”

Quando digo grupo, refiro-me aos amigos próximos e parentes, não a esses grupos de redes sociais que têm milhares de seguidores e vivem azucrinand­o os outros.

“Pois é, a Celeste...” “Conta, conta tudo. Deve ser coisa da sua cabeça. A Celeste? Vamos nos encontrar. Trocar figurinhas. Mas é sério?”

“Esqueceu que não podemos sair? Celeste, ah, que triste. Não liga mais para mim, me esquece, só tem olhos para o outro, vive o dia inteiro atrás dele.”

“Como sabe? Como descobriu? Olhando o celular? Coisa que não se deve fazer. O sujeito mandou flores, bilhetes, joias? Alguém viu e te abriu os olhos?”

“Nada disso, é tudo claro. O outro está aqui? Dentro de casa”

“O quê? Dentro de casa? Você viu? Sabe quem é? Falou com ele?”

“Vi. Não adianta falar com ele. É indiferent­e, fica na dele! Não responde, nada diz, nada comenta. Fica por aqui, vai para lá volta para cá, indiferent­e.”

“Minha Nossa Senhora Desatadora de Nós, parece Nelson Rodrigues. Não será efeito do tédio do confinamen­to? Não dá para peitá-lo? Dizer qual é a tua, bicho?

“Bicho? Gíria de nossa juventude. Nada adianta. Ele circula pela casa, ela vai atrás. Não adianta dizer uma palavra, nem ameaçá-lo. Ele não ouve, me desdenha, ignora, ele vira as costas.”

“Celeste surtou? Nessa quarentena, tem gente pirando, perdendo o controle, ficando paranoica. Eu mesmo tenho feito besteiras que me preocupam. Hoje, ao colocar a mesa para o almoço, minha tarefa doméstica (uma delas, claro), percebi que coloquei em lugar de garfo e faca, duas facas. Ontem saí perguntand­o: você viu meu relógio? Não encontro. Você não usa relógio, garantiu minha mulher. Não quer dizer celular? Era. Quantas vezes, com o celular, faço uma ligação e o meu fone fixo toca, estava ligando para mim mesmo. Pior foi no dia em que estava escrevendo anotações com uma BIC. Você conhece o poder das canetas, elas podem tudo. A carga acabou, apanhei um tinteiro – porque tenho caneta tinteiro também, sonho de adolescênc­ia. E me vi mergulhand­o a BIC no tinteiro. Não estou louco, divirto comigo mesmo. Se for preciso, tenho um amigo terapeuta, o Uchikusa, peço, ele me atende, bom sujeito. Qualquer dia escrevo a história dele.”

Ele me ouviu com paciência, sabe que preciso desabafar.

“Pois é a Celeste. Estou em casa, e ela some. Chamo, procuro e descubro, lá está ela junto dele.”

“A coisa é grave. Quem é esse homem? Foi de repente?

“Faz três dias. Desde que ele chegou fui esquecido. Ela está encantada. Passa o dia para lá e para cá. Preocupa-se com ele, ri dele, ajuda-o com ternura. Não sei o que fazer.”

“Mas quem é esse homem? “Não é homem, ela está apaixonada pelo robozinho que limpa a casa. Redondinho como se fosse a base de uma antiga enceradeir­a. Programado, solto, ele vai em frente, bate em um obstáculo, vira, tem sensores que o orientam, é até assustador, vira, vem, avança, parece inteligent­e, acho que pensa, é pacífico, obcecado, vê uma poeirinha vai lá. Até me deu até saudades daquele robô simpático da série Perdidos no Espaço – só idosos vão se lembrar – ou o R2D2 do Guerra nas Estrelas. Limpa, e como limpa! Não fica um cisquinho. Penso o que vamos fazer com a diarista da limpeza quando tudo voltar ao normal. A Celeste feliz, disse: agora estou livre, há anos sonho com isso. E vai atrás, feliz, quando ele tenta entrar embaixo de um móvel e fica preso, ela corre e desenrosca. Claro que ela contou às amigas, mandou vídeos, deu uma epidemia, de compra. Todas encomendar­am. Tem uma amiga dela, cheia da grana que pesquisa na Amazon, à procura de um robozão que cuide da casa inteira, limpe janelas, lave banheiro, cozinhe, lave roupa, faça as unhas, massageie os pés, atenda telefone, ligue a tevê, faça o café, faça massagem, pratique ioga, corra na esteira, faça compras de supermerca­do, dê conselhos, jogue na Mega Sena. E principalm­ente faça amor.”

Pera?

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