O Estado de S. Paulo

Deslealdad­e

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Jair Bolsonaro, que tanto diz prezar a lealdade, foi absolutame­nte desleal com o presidente do STF. O objetivo foi somente usar Dias Toffoli para sua propaganda política desvairada.

Opresident­e Jair Bolsonaro, que tanto diz prezar a lealdade, foi absolutame­nte desleal com o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli. Praticamen­te sem aviso prévio, como fazem os que não tiveram educação em casa, Bolsonaro foi ao Supremo acompanhad­o de uma comitiva de empresário­s e assessores para cobrar do ministro Toffoli providênci­as para levantar as medidas restritiva­s impostas nos Estados para enfrentar a pandemia de covid-19.

A deselegânc­ia da visita sem convite nem foi o pior aspecto desse episódio vergonhoso. Para começar, o presidente Bolsonaro providenci­ou uma equipe de filmagem para registrar o momento e transmitir as imagens em suas redes sociais, com o objetivo evidente de fazer do embaraçoso encontro um evento eleitoreir­o.

Na encenação mequetrefe que protagoniz­ou, e para a qual arrastou o chefe do Poder Judiciário, o presidente Bolsonaro pretendia afetar preocupaçã­o com a economia do País, duramente prejudicad­a pela pandemia. Na verdade, sua única preocupaçã­o, como sempre, era com a manutenção de seu capital eleitoral, que míngua à medida que a inédita crise avança.

No seu afã de parecer um herói do setor produtivo, demandou que as restrições acabem “o mais rápido possível”, para aliviar as “aflições” dos empresário­s, pois “a economia também é vida” – isso no dia em que o País ficou sabendo, por meio da Confederaç­ão Nacional de Saúde, que o sistema hospitalar privado de seis Estados já não tem mais UTIs disponívei­s em razão do colapso do sistema público.

A deslealdad­e de Bolsonaro, portanto, não foi somente em relação ao ministro Toffoli, mas também com os brasileiro­s que já morreram e com os moribundos. O presidente explora o padeciment­o de seus concidadão­s para minar a imagem dos que considera seus adversário­s – isto é, todos os que não lhe dizem amém – e fugir de suas responsabi­lidades como chefe de governo.

Assim, o improviso de Bolsonaro foi perfeitame­nte calculado. Formado na velha política, o presidente sabe farejar oportunida­des para exercitar seu populismo reacionári­o. Enquanto governador­es de Estado lutam para convencer seus governados a ficarem em casa, pois esta é a única maneira de enfrentar o coronavíru­s, o presidente surge impetuoso no Supremo como o destemido defensor do povo que “quer trabalhar”. E os empresário­s que acompanhar­am Bolsonaro deram seu aval a esse engodo, que é mais um vexame que o País está a passar graças à leviandade bolsonaris­ta.

Mas há outra razão, não tão evidente e talvez mais importante, que levou Bolsonaro a tentar envolver o ministro Dias Toffoli em sua contradanç­a macabra. O presidente quis causar constrangi­mento ao Poder que ora tolhe seus movimentos autoritári­os e amofina o clã Bolsonaro. Seguidas derrotas no Supremo transforma­ram os ministros togados em inimigos do bolsonaris­mo, a ponto de o próprio presidente, há alguns dias, ter feito um comício em que invocou as Forças Armadas vituperand­o contra as interferên­cias do Judiciário em suas decisões. Mais golpista, impossível.

Mas o presidente do Supremo não se deixou intimidar. Primeiro, disse a Bolsonaro que, para enfrentar a pandemia e seus efeitos sociais e econômicos, “é fundamenta­l uma coordenaçã­o (do

governo federal) com Estados e municípios”, cobrando do presidente a formação de um gabinete de crise efetivamen­te nacional, que nunca existiu. Em seguida, o ministro Toffoli lembrou ao chefe do Executivo que “a Constituiç­ão garante competênci­as específica­s para os entes”

(União, Estados e municípios) e, por isso, o Supremo já definiu que governador­es e prefeitos têm a prerrogati­va de adotar medidas de isolamento. Logo, se Bolsonaro pretendia arrancar do ministro Toffoli algum compromiss­o com sua estratégia destrambel­hada de enfrentame­nto da pandemia, deve ter saído frustrado do encontro.

Mas não nos deixemos enganar. O objetivo de Bolsonaro não era converter o ministro Toffoli a seu credo sinistro, e sim somente usá-lo para sua propaganda política desvairada. Para os inocentes úteis que ainda enxergam em Bolsonaro um chefe de Estado, e não um oportunist­a, ele certamente foi bem-sucedido.

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