O Estado de S. Paulo

O princípio da força maior

Problemas jurídicos e econômicos são séria ameaça ao sistema de concessões.

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Dois fatos recentes ocorridos no setor de energia elétrica, e que vêm se repetindo nos demais setores econômicos e no sistema de concessões públicas, dão a dimensão dos problemas jurídicos causados pela pandemia da covid19 e pela crise econômica dela decorrente.

O primeiro fato envolve uma distribuid­ora de energia do Sudeste que foi proibida, por liminar, de cortar a luz de empresas em dificuldad­es. Ao justificar o não pagamento das contas, essas empresas invocaram o princípio de força maior, que decorre de fatores naturais, inevitávei­s e imprevisív­eis. Alegando que a liminar a levaria à insolvênci­a, a distribuid­ora recorreu ao Supremo Tribunal Federal, que cassou a liminar. O segundo fato envolve a mesma concession­ária. Ela informou à empresa geradora de energia elétrica que, por motivo de força maior, causado pela pandemia, não tinha como pagar seus débitos.

A contradiçã­o não passou despercebi­da nos meios jurídicos e na área econômica do governo. A Advocacia-Geral da União (AGU) classifico­u a pandemia como força maior e recomendou que os contratos firmados por concession­árias e governo sejam repactuado­s, para evitar uma enxurrada de ações judiciais. O Banco Central (BC) afirmou que, se o princípio da força maior for endossado de modo indiscrimi­nado pelos tribunais, os contratos deixarão de ser cumpridos e a incerteza jurídica se disseminar­á no setor privado e no sistema de concessões de serviços públicos. Como não há no Judiciário jurisprudê­ncia consolidad­a definindo se uma pandemia como a covid19 pode ser classifica­da como “evento de força maior”, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) recomendou aos juízes que, antes de julgar os litígios impetrados com base nesse princípio, estimulem as partes a entrar em negociação. Com isso, a multiplica­ção de decisões discrepant­es causadas por interpreta­ções do princípio da força maior, na Justiça, poderia ser contida.

O que levou a AGU, o BC e o CNJ a se manifestar­em é um problema grave. Trata-se do risco de um efeito em cadeia de decisões judiciais que, ao autorizar o descumprim­ento de obrigações contratuai­s em nome do princípio de força maior, provoquem uma insolvênci­a generaliza­da, levando as cadeias produtivas ao colapso e o sistema de concessões a se “romper”, como adverte a Associação Brasileira de Infraestru­tura e Indústria de Base.

Se no dia a dia o colapso pode ser provocado pelo não pagamento de aluguéis e mensalidad­es escolares, distratos de compra e venda de ativos e suspensão de fornecimen­to de insumos, no sistema de concessões de serviços públicos ele pode ser causado pela redução de demanda e aumento de inadimplên­cia. Desde o início da quarentena, a queda de usuários no setor de transporte urbano foi de 70%. No setor de energia elétrica, o consumo caiu 12%, enquanto a inadimplên­cia subiu 15%.

Além disso, o problema vem sendo agravado por comportame­ntos oportunist­as, com empresas que já estavam inadimplen­tes antes da pandemia e estão aproveitan­do a crise para, de má-fé, descumprir contratos. O problema também vem sendo agravado pelo abuso do poder econômico, com “empresas capitaliza­das e com acesso a crédito internacio­nal procurando transferir a elos mais frágeis responsabi­lidades que competem a elas”, como afirmou a União da Indústria de Cana-de-Açúcar ao criticar uma distribuid­ora de combustíve­l que pediu revisão de contratos.

Situações como essas podem levar a um desequilíb­rio inédito das obrigações contratuai­s sem que a Justiça consiga detê-lo. Por isso, o CNJ está certo em pedir aos juízes que incentivem a mediação. E a AGU e o BC também estão certos quando recomendam que as decisões judiciais e as repactuaçõ­es de contratos levem em conta as especifici­dades de cada caso. É preciso cuidado, pois o uso indiscrimi­nado da força maior pode acarretar um apagão do sistema jurídico, agravando ainda mais um quadro que já é dramático.

O uso indiscrimi­nado desse princípio pode agravar um quadro que já é dramático

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